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quarta-feira, 2 de outubro de 2013

QUATROCENTOS


QUATROCENTOS
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br



                Quatrocentos anos! Quatrocentos! A idade da figueira impressiona, apesar de saber que existem outras árvores, da mesma espécie ou não, com mais primaveras ainda. No meio da mata, ou do que dela restou, encravada em Cachoeirinha, a figueira chama atenção não apenas pela quantidade de anéis, mas também pelo tamanho e espessura do tronco. No meio deste, uma enorme passagem, por onde passa, tranquilamente, o corpanzil de um homem médio. Quanta coisa não viu e ouviu a figueira? Quantos abraços, tratos e destratos? Quantas carícias, juras de amor, promessas cumpridas ou não? Quantos criadores e criaturas? Maus e bons? Gente de todo gênero, etnia e credo? Letrados ou analfabetos? Empresários, operários, desempregados e mendigos? Religiosos, agnósticos, carcereiros e bandidos? Sãos, doentes e sarados? Sorridentes, carrancudos, simpáticos, expansivos e tímidos? Toda espécie de gente. Quatrocentos anos! A cidade sequer sonhava em existir. Mato para todo lado e, com ele, uma incontável variedade de espécies. Imensurável complexidade encerrada numa única palavra: Mato. Neste, a figueira fixou lugar, enraizou. Apesar do tamanho, socializou o espaço com cipós, bromélias e samambaias. Sobre e sob seus galhos fortes e densos, animais de toda ordem passaram e seguem passando. Mais escassos do que outrora, é verdade, afinal muitos não resistiram à barbárie civilizatória. Diante do olhar silencioso, nem por isso omisso ou indiferente, da figueira, os mais diversos seres se cruzaram, procriaram, se serviram ou foram servidos como alimento, sem espaço para culpa frente à grande “Mãe”. Não pode haver pecado onde inexiste a maldade. Não pode existir pecado onde inexiste o homem. A figueira, antes da chegada do juruá, sentia-se segura, como elefante em meio à savana. Hoje é diferente. A placa metálica próxima a ela, nem de perto lhe transmite confiança e nem tampouco otimismo frente aos dias vindouros. Feito certidão de nascimento, não é garantia de quase nada. Ora, se o homem mata os de sua própria espécie, o que esperar em relação às demais? A figueira teme por ela e pela mata. Receia pelo preá, capivara, serpente, formiga, sapo, beija-flor... Pouco lhe adianta a pomposidade do nome: fícus guaranítica. Prefere o apelido, ainda que tosco: “mata-pau”. Assim como o simpático cacique guarani a ciceronear o grupo de curiosos, a figueira por vezes se sentia peça de museu. Admirada, mas daquela espécie de admiração incapaz de mover o juruá a transformar, profunda e verdadeiramente, suas ações. Admiração burguesa, inócua, infértil, portanto, contrária à natureza da própria figueira. Esta nasceu para frutificar e ao fazê-lo garante a sobrevivência, dela e das demais moraceaes.  Enquanto o juruá retém os frutos, a figueira os partilha. Ironicamente, ele se “vai” – quase sempre cedo –, ela permanece. A figueira fica a observar quem a observa. São formas distintas de se ver o mundo. O juruá costuma querer conhecê-la a partir da copa, por isso olha para cima e, quase inevitavelmente, deixa escapar um “ohhhh”. Não sabe ele que a grandeza da figueira reside no chão, na terra. Feito o iceberg, grandioso é o que não se vê, exceto pelos olhos da alma. O juruá, talvez, tenha perdido a sua. A figueira olha o mundo de outra forma. Melhor, de outras formas, sem que uma aniquile ou dispense as outras. Vê o mundo por todos (?) os ângulos: de cima, de baixo, do nascente, do poente, do sul, do norte... É um olhar “feminino” na essência. Ao contrário do juruá que olha para o céu e o reverencia através de palavras vazias, deixando de lado os mais elementares valores “terrenos”, a figueira lança um olhar que envolve e se envolve. Seu olhar jamais passa em branco. É, como diriam muitos juruás, um olhar verdadeiramente cristão. A figueira olha e acolhe. Para maioria, olhar de Monalisa, indecifrável. Para o velho cacique, olhar familiar. Deixou-se abraçar pela figueira numa invejável – e, para o juruá –, incompreensível e inalcançável simbiose. 

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