QUATROCENTOS
Gilvan Teixeira
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blog:
profgilvanteixeira.blogspot.com.br
Quatrocentos anos! Quatrocentos! A idade da figueira impressiona,
apesar de saber que existem outras árvores, da mesma espécie ou não, com mais
primaveras ainda. No meio da mata, ou do que dela restou, encravada em
Cachoeirinha, a figueira chama atenção não apenas pela quantidade de anéis, mas
também pelo tamanho e espessura do tronco. No meio deste, uma enorme passagem,
por onde passa, tranquilamente, o corpanzil de um homem médio. Quanta coisa não
viu e ouviu a figueira? Quantos abraços, tratos e destratos? Quantas carícias,
juras de amor, promessas cumpridas ou não? Quantos criadores e criaturas? Maus
e bons? Gente de todo gênero, etnia e credo? Letrados ou analfabetos?
Empresários, operários, desempregados e mendigos? Religiosos, agnósticos,
carcereiros e bandidos? Sãos, doentes e sarados? Sorridentes, carrancudos,
simpáticos, expansivos e tímidos? Toda espécie de gente. Quatrocentos anos! A
cidade sequer sonhava em existir. Mato para todo lado e, com ele, uma
incontável variedade de espécies. Imensurável complexidade encerrada numa única
palavra: Mato. Neste, a figueira fixou lugar, enraizou. Apesar do tamanho,
socializou o espaço com cipós, bromélias e samambaias. Sobre e sob seus galhos
fortes e densos, animais de toda ordem passaram e seguem passando. Mais escassos
do que outrora, é verdade, afinal muitos não resistiram à barbárie
civilizatória. Diante do olhar silencioso, nem por isso omisso ou indiferente,
da figueira, os mais diversos seres se cruzaram, procriaram, se serviram ou
foram servidos como alimento, sem espaço para culpa frente à grande “Mãe”. Não
pode haver pecado onde inexiste a maldade. Não pode existir pecado onde inexiste
o homem. A figueira, antes da chegada do juruá,
sentia-se segura, como elefante em meio à savana. Hoje é diferente. A placa
metálica próxima a ela, nem de perto lhe transmite confiança e nem tampouco
otimismo frente aos dias vindouros. Feito certidão de nascimento, não é
garantia de quase nada. Ora, se o homem mata os de sua própria espécie, o que
esperar em relação às demais? A figueira teme por ela e pela mata. Receia pelo
preá, capivara, serpente, formiga, sapo, beija-flor... Pouco lhe adianta a
pomposidade do nome: fícus guaranítica.
Prefere o apelido, ainda que tosco: “mata-pau”. Assim como o simpático cacique
guarani a ciceronear o grupo de curiosos, a figueira por vezes se sentia peça
de museu. Admirada, mas daquela espécie de admiração incapaz de mover o juruá a
transformar, profunda e verdadeiramente, suas ações. Admiração burguesa,
inócua, infértil, portanto, contrária à natureza da própria figueira. Esta
nasceu para frutificar e ao fazê-lo garante a sobrevivência, dela e das demais moraceaes. Enquanto o juruá retém os frutos, a figueira os
partilha. Ironicamente, ele se “vai” – quase sempre cedo –, ela permanece. A
figueira fica a observar quem a observa. São formas distintas de se ver o
mundo. O juruá costuma querer conhecê-la
a partir da copa, por isso olha para cima e, quase inevitavelmente, deixa
escapar um “ohhhh”. Não sabe ele que a grandeza da figueira reside no chão, na
terra. Feito o iceberg, grandioso é o
que não se vê, exceto pelos olhos da alma. O juruá, talvez, tenha perdido a sua. A figueira olha o mundo de
outra forma. Melhor, de outras formas, sem que uma aniquile ou dispense as
outras. Vê o mundo por todos (?) os ângulos: de cima, de baixo, do nascente, do
poente, do sul, do norte... É um olhar “feminino” na essência. Ao contrário do juruá que olha para o céu e o reverencia
através de palavras vazias, deixando de lado os mais elementares valores “terrenos”,
a figueira lança um olhar que envolve e se envolve. Seu olhar jamais passa em
branco. É, como diriam muitos juruás,
um olhar verdadeiramente cristão. A figueira olha e acolhe. Para maioria, olhar
de Monalisa, indecifrável. Para o velho cacique, olhar familiar. Deixou-se
abraçar pela figueira numa invejável – e, para o juruá –, incompreensível e inalcançável simbiose.
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