INDIO VELHO (2)
Gilvan Teixeira
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O índio, remanescente da tribo guarani, parecia
indiferente ao avanço da idade. Aliás, para ele o tempo escoava de maneira
distinta do juruá. Jamais usara, por exemplo, relógio. Exceto a sucessão das
estações e as mudanças de lua, o índio velho não atentava para o calendário.
Janeiro, julho, dezembro... Pouco lhe diziam os meses do ano ou os dias da
semana. Todo dia era de trabalho e de descanso. Todo dia era sagrado, portanto,
dia de gratidão. Ao longo da vida, muito mais agradecera do que pedira. Por que
seria diferente? Afinal, tinha tudo: o que comer, o que vestir, onde inclinar a
cabeça. O índio velho, sentado sobre a cadeira de vime, sorvia o mate quente enquanto
o olhar parecia distante, talvez acompanhando as lembranças de tempos idos. Não
tinha do que se arrepender. Jamais prejudicara, intencionalmente, alguém. Não
matara, não furtara, não roubara, não cobiçara o que é de outrem, não se
apropriara de bem alheio (nem privado e nem, tampouco, público)... Acreditava o
índio não fazer nada mais além do que era de sua obrigação. Aprendera com os
antepassados assim. Vez por outra, fixava o olhar num que outro ponto, como que
a observar meticulosamente um determinado objeto. Não muito adiante, uma
criança parecia exigir do adulto, talvez seu pai, um brinquedo. Frustrado em
sua intenção, o pirralho mais parecia um cavalo xucro, pinoteando daqui e dali.
Diante da cena, o índio velho só abanou a cabeça, talvez em sinal de
desaprovação ou, quem sabe, de desesperança quanto às futuras gerações. Tomou-lhe
conta certo rubor, envergonhado que estava por ver a carroça posta frente aos
bois. Ao ver o adulto refém dos caprichos da criança, sentiu uma espécie de
ânsia, um mal estar a invadir o estômago. Não entendia e menos ainda aceitava a
ditadura do piá. Outro dia ainda, um sobrinho vindo das bandas da capital,
noticiara que não se podia mais dar uma palmada sequer no guri ou guria
levados. O índio pensou, pensou... Não disse nada. Engoliu em seco a
incredulidade. Fora criado em meio às leis advindas dos costumes, de pai para
filho. Cabia ao último obedecer e respeitar o primeiro. Simples assim. A
obediência e a hierarquia jamais foram fonte de rancor entre seu povo. Ao
contrário. Era um tempo em que a tribo paria crianças sadias e felizes,
emocionalmente equilibradas, respeitosas, disciplinadas, atentas, ágeis,
comprometidas com o grupo, solidárias. Crianças que corriam, brincavam, “morriam”
aqui para reaparecerem logo ali adiante. Apesar de uma que outra rusga, típica
da idade, desconheciam a violência e ardilosa traição. Bastava um olhar do
adulto e pronto! Os pequenos se aquietavam. O índio velho tinha dificuldade de compreender
o que chamavam de “modernidade”. Como entender o profundo vazio das crianças de
hoje? Têm, muitas vezes, tudo o que o dinheiro possa comprar, porém mais
parecem um vale de ossos secos. Têm dificuldade para sentarem, escutarem, se
concentrarem. A obesidade é não apenas do corpo, mas da alma. O índio velho
nascera num tempo em que prática e palavra caminhavam juntas. Hoje, ficava
espantado ao ver muitos juízes, pastores, advogados, psicólogos, médicos, psicopedagogos,
professores gerando filhos desgarrados, desalinhados, desatentos, hipocondríacos,
viciados, mentirosos, arrogantes, violentos, maldosos, desleixados,
preguiçosos... Uma espécie de infanticídio espiritual. Centenas, milhares,
milhões de crianças “natimortas”. Pele, osso e Coca-Cola. Pouco mais do que
isso. O índio velho, com o olhar ainda absorto diante da cena da criança raivosa,
não dizia nada. Limitava-se a lamentar. Sobre ele, uma revoada de caturritas a
desaparecerem no horizonte.
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