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quarta-feira, 5 de junho de 2019

O CIRCO

O CIRCO
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br




            Noutros tempos, era lugar de diversão, de indescritível alegria, especialmente por parte dos de tenra idade. Ali, malabaristas disputavam espaço com animais e seus adestradores, palhaços e equilibristas. Bailarinas, enfiadas em suas roupas justas, a levitar com suas sapatilhas aladas. Destoando dos risos, apenas a inconfundível voz dos vendedores das maçãs do amor, algodão doce, pipoca e refrigerante. Sob a luz do picadeiro, os saltimbancos com suas brincadeiras a transformarem aquele momento em algo impar e inesquecível. Tempos bons em que o circo era certeza de boas risadas. Querem hoje, e não são poucos, vê-lo pegar fogo. Imprudente e irresponsavelmente, esquecem que sob suas lonas jaz, sim, um que outro desafeto, mas, também, incontáveis amigos, filhos, irmãos e companheiros. Parecem esquecer que o fogo é “democrático”, a todos queima indistintamente, pretos e brancos, cristãos e ateus, letrados e analfabetos, liberais e socialistas. Alimentadas pelo ódio e desprezo, as chamas vão ceifando vidas, evaporando a esperança e transformando em cinzas as relações. Não demora, pouco restará senão um vale de ossos secos, onde a conversa franca, o diálogo humanizatório e a companhia prazerosa serão coisas do passado. Ainda ontem, quando todos se sentiam pertencentes ao circo, o simples monóculo era suficiente para vislumbrar o mundo. Hoje, os tempos são outros. As lentes, por mais numerosas e potentes que sejam, vão, a cada dia, ofuscando nossa visão. Já não vemos e nem tampouco reconhecemos o outro. Não vemos a nós mesmos e nem nos reconhecemos. Involuímos. Quiçá seja a fumaça do circo, asfixiante, espessa, nauseante. Tamanha toxidade contagia, produzindo cenas de horror, um inferno dantesco, sombrio, desanimador. Escasseiam-se os pontos de fuga e multiplicam-se os gritos de socorro. Por todo lado corpos que, como copos vazios, por mais coloridos que sejam, há muito perderam o próprio sentido. Pobres recipientes, secos e sequiosos, já nada oferecem e nem tampouco recebem. Não tarda, o calor do fogo deles arrancará a frágil e fugaz beleza. Pura vaidade.  Enquanto arde o circo, as estruturas, até então tidas por sólidas, vão se desmanchando, sepultando valores, moral, leis, tradições… Na hora do aperto, um que outro -  tomado, quem sabe, por uma esquizofrenia momentânea derivada do caos – esboça teses de “direita” e de “esquerda”, enquanto segue cambaleante, sem norte, tropeçando nos corpos sem vida. As cortinas, que antes se abriam a marcarem os atos da peça, já não existem. Consumidas pelo fogo, não passam de fiapos incandescentes a denunciarem o ocaso da vida. O que antes era um circo vai se transformando numa grande pira, alimentada pelas páginas de Smith e de Marx, de Freire e de Carvalho, instigada por corpos de todos os tamanhos e idades, de todos os gêneros, de todas as crenças e ideologias. A fumaça escura vai formando uma triste coluna a alcançar o céu, exalando o fétido odor da vaidade, da intolerância, do egocentrismo e da indiferença. Saudade do velho circo, não daquele da política dos Césares, alienante e sarcástico, nem tampouco do espetáculo piegas e descompromissado com a sorte alheia, mas do circo das boas utopias, da convivência, da alegria, da confiança, do diálogo, da cumplicidade frente ao sentimento daqueles que acostumamos a chamar de “terceiros”, como se “primeiros” fôssemos. 

2 comentários:

  1. Saudades de um circo em que a manifestação era coletiva por um coletivo. Bela reflexão!!!

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    1. Querida e admirável amiga, comungo de teu sentimento. Precisamos evoluir, quem sabe enveredando para um processo semelhante ao do "Curioso Caso de Benjamin Button", saindo da atual e triste realidade e desembocando no meio de uma aldeia... O que achas? Abraço.

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