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quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

OS TRÊS PATETAS


OS TRÊS PATETAS
Gilvan Teixeira
Blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br


A comédia pastelão das décadas de 1960 e 70, quando eu ainda não passava de um guri, parece mais viva do que nunca. Menos engraçada, é claro, a versão tupiniquim criada na republiqueta verde-amarela não deixa de guardar algumas semelhanças com aquela encenada por Moe, Larry e Curly. As patetices destes últimos são um nada frente àquelas promovidas pelo Executivo, Legislativo e Judiciário de nosso vergonhoso país. A comicidade da arte pretérita dá lugar ao patético papel desempenhado por aqueles que, sob seus ternos e togas, não conseguem disfarçar o azedume que brota da ética putrefata e da arrogância abjeta. Batem cabeça os Patetas da República, fazendo lembrar baratas que, em fuga, esquivam-se da luz, pois que acostumadas aos ambientes escuros e fétidos dos porões das Câmaras, Assembleias, Prefeituras, Palácios e Tribunais de toda ordem. É falar em transparência, enlouquecem. É pensar em controle social, endoidecem. É cogitar em equidade, desfalecem. Não por acaso, o Brasil mais parece um enorme móvel tomado de cupins. Por fora, aparenta – por vezes – certa normalidade, não fossem os “farelos” em forma de violência urbana, escolas e hospitais sucateados, desemprego, desigualdade social, carga tributária insana, falta de saneamento básico, corrupção generalizada, precarização dos direitos trabalhistas e previdenciários, disseminação do ódio em relação às minorias… Farelos que vão sendo varridos para baixo do tapete, escondidos sob as cuecas, justificados por meio de sentenças, legitimados através de dispositivos legais, tornados palatáveis pela irracionalidade da propaganda. Enquanto isso, as estruturas da famigerada República e do falacioso Estado de Direito definham sob o ataque voraz das pragas. Quanta patetice! O equilíbrio sugerido por Montesquieu jamais existiu por estas bandas. Enquanto o país mais parece um ébrio a enrolar as pernas, pois que frágeis os membros que deveriam sustentá-lo, os Poderes batem cabeça. Fazem lembrar a Hidra de Lerna depois de uma grande “cheirada”. Falta um norte, sobra palermice. Quem sofre é a “plateia” que – a preço de ouro – , sentada sobre o piso frio e úmido, sustenta o bizarro espetáculo. No picadeiro, o que se vê são os Três Patetas num ridículo improviso, indiferentes à qualidade do espetáculo, confiantes talvez no conforto modorrento de seus cargos. Frases prontas, chavões e citações em latim tentam engambelar o espectador, que, a mexer-se no assento duro, já demonstra certa impaciência. Vez por outra, a velha e carcomida, mas ainda eficiente, política do “pão e circo” sofre algumas turbulências. Apela-se então para a “mudança”, pois que trata-se da melhor forma de deixar tudo como está. Os Patetas mudam uma fala aqui outra acolá, trocam seis por meia dúzia, invertem uma ou outra peça do baralho e pronto! Segue o espetáculo. À plateia, pode haver momento mais jocoso do que aquele em que os Patetas batem um no outro? É quando, então, o que era “público” torna-se “turba”, saindo em defesa deste ou daquele Pateta, na vã esperança de deixar a insignificância do anonimato para ser protagonista. Quem ri, agora, são os Patetas. Sim, riem de nós, de nossa imbecilidade e tendência a ver no algoz um amigo, ainda que Pateta.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

“ALUNO É PARÂMETRO DELE MESMO”


“ALUNO É PARÂMETRO DELE MESMO”
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br

            “O aluno é parâmetro dele mesmo!”. Quem já não ouviu o chavão? A afirmação, revestida de uma aparente aura acadêmica, ao que tudo indica, diz quase nada. Afinal, o que é “parâmetro”? Conceitos acerca do vocábulo temos de sobra. Usemos, a título de exemplo, uma das definições trazidas pelo Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Segundo ele, “parâmetro é aquilo que serve de base ou norma para que se proceda à avaliação de qualidade ou quantidade”. Parâmetro pressupõe, portanto, aquilo já existente. Qual é o “parâmetro” que o aluno possui? Qual é a distância ou diferença entre o que ele hoje demonstra saber (habilidades e competências desenvolvidas) comparado ao que apresentava ao iniciar o bimestre, trimestre, semestre, ano ou algo parecido? Ao que tudo indica nem ele e nem tampouco o professor ou a escola sabem. Buscando, consciente ou inconscientemente, responder a tão complexo questionamento apela-se, no meio pedagógico, a teorias que nada mais são do que evasivas a revelarem o profundo desconhecimento quanto ao processo ensino-aprendizagem. Não apenas “desconhecimento”, mas, por vezes, despreparo, acomodação e até mesmo certa arrogância professoral na difícil tarefa de avaliar o educando. Talvez, ainda, temor em levar a fundo a avaliação em relação ao “outro”, afinal isso é também “avaliar-se”, debruçar-se sobre o próprio trabalho, correndo o risco de – muito provavelmente – precisar mexer no planejamento já amarelado pelo tempo, repensar a metodologia há anos adotada ou quebrar a cabeça na (re)montagem das velhas questões de prova. Tem sido comum, ainda, educadores/escolas propugnarem pela máxima de que “os aspectos qualitativos devem prevalecer sobre os quantitativos”, fazendo uma interpretação equivocada, senão bizarra, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A Lei Federal no 9.394/96 traz:
Art. 24. A educação básica, nos níveis fundamental e médio, será organizada de acordo com as seguintes regras comuns:
[...]
V - a verificação do rendimento escolar observará os seguintes critérios:
a) avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais;
[...]
e) obrigatoriedade de estudos de recuperação, de preferência paralelos ao período letivo, para os casos de baixo rendimento escolar, a serem disciplinados pelas instituições de ensino em seus regimentos;
[...]

            Muitas escolas/professores traduzem os “aspectos qualitativos” como estando relacionados à postura do educando frente aos componentes curriculares, dando ao aluno uma “nota” (ou equivalente) pelo comportamento, organização, pontualidade, respeito às regras da escola, entrega de trabalhos, etc.. Ledo engano daqueles que assim procedem, pois os referidos atributos não passam de mera obrigação (inclusive contratual) do discente, não guardando relação direta com o “rendimento escolar”, este sim objeto do Artigo supra. O que se vê, na prática, é um preocupante processo de “idiotização” do aluno, onde – ao contrário do que se deveria esperar (até pelo enorme custo que representa a escola, pública ou não) – é notória uma “involução”, retirando dele o pouco que lhe resta da infância, como a curiosidade e o prazer pela aprendizagem. Conseguimos tornar a escola algo pior e mais cruel do que a caixa de Pandora, deixando esvair a própria esperança e empurrando o mancebo, cada vez mais, para o fundo escuro e distorcido da caverna. Como forma de mascarar tamanho fracasso, não são poucas as instituições que criam e multiplicam “instrumentos avaliativos” (provinhas, trabalhinhos, recuperação, “recuperação da recuperação”...) que mal conseguem disfarçar o cheiro fétido que brota da ignorância. O resultado não poderia ser pior: alunos chegando ao término dos Ensinos Fundamental e Médio sem os requisitos mínimos necessários. O que se pretende, obviamente, não é retirar da escola seu caráter de socialização e troca de experiências, mas atribuir (restituir) a ela seu principal papel, o de ensinar, sob o risco – de não o fazendo – perder o próprio sentido de existir. A escola não deve ser confundida com a “esquina”, a casa ou o clube que, vale lembrar, também são espaços importantes para formação do sujeito. A “escola é escola”, assim como “professor é professor”, redundâncias importantes mas, ao que parece, esquecidas. Urge lutarmos por uma escola de qualidade, onde eventuais teorias (behaviorista, ausubeliana, vygotskyana, piagetiana,  freiriana, etc) não sejam um fim em si mesmas ou meras “armas” em favor ou desfavor de ideologias vazias (de “esquerda”, “direita”, “centro”...), mas referenciais teóricos capazes de contribuírem para o que mais se espera de uma escola: a aprendizagem!

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

ESCOLA DEMOCRÁTICA E PARTICIPATIVA


ESCOLA DEMOCRÁTICA E PARTICIPATIVA
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br


Teoria e prática. Entre elas, uma distância oceânica, tomada de profundas fossas onde são comuns as contradições, ranços, preconceitos, corporativismos, vícios, acomodações, arrogâncias e narcisismos egocêntricos, ainda que enrustidos. A legislação brasileira é pródiga na previsão e exigência de uma escola pública “democrática” e participativa”. O espírito “cidadão” trazido pela Carta promulgada em1988 foi e vem sendo ratificado por inúmeros outros diplomas legais, sejam federais, estaduais ou municipais. Cachoeirinha, por exemplo, conta com as Leis Municipais nºs 2263/2004 (versa sobre os Conselhos Escolares), 2265/2004 (eleição de Diretores) e 2384/2005 (Sistema Municipal de Ensino), todas elas apontando na mesma direção, a saber o da “descentralização”, da “participação” e da “democratização”. Portanto, a previsão legal é farta no que tange à possibilidade de fazer da escola pública municipal (EMEIs e EMEFs) um espaço verdadeiramente “democrático e participativo”. Contudo, em que pese a legislação favorável e as boas intenções consubstanciadas, por exemplo, no Plano Municipal de Educação, infelizmente, o que se vê é uma enorme distância entre o pretendido e o realmente alcançado. Os resultados obtidos, tanto do ponto de vista da efetiva participação da comunidade escolar, quanto – e principalmente – do ponto de vista da qualidade do ensino, são pífios, estando muito aquém do razoável e aceitável. A quem cabe a “culpa” por tamanho fracasso? Carência de recursos humanos e financeiros? Gestão equivocada? Despreparo por parte dos servidores? Desvalorização salarial e profissional? Apatia e ausência da família? Descomprometimento do corpo discente? Soa como inócuo terceirizar a “culpa”. O grande desafio está em, sim, buscar responsabilidades (gestor, professor, educando, família, sindicato, etc.), mas sobretudo buscar identificar os problemas, criar estratégias viáveis para superá-los e, principalmente, colocá-las em prática. Urge superarmos o plano do discurso e dos chavões. Uma escola “democrática e participativa” não é algo dado, mas construído. Pressupõe desacomodação, trabalho, doação, embate propositivo e abertura para o diálogo. Corporativismos doentios, intransigências pessoais e/ou de grupos, benesses e privilégios de alguns poucos precisam dar lugar à vontade coletiva (da maioria). A escola não é do Diretor, do professor, do pai ou do aluno. A escola é um espaço público, portanto pertencente a todos os segmentos da comunidade escolar, de forma equitativa. Os fóruns e Conselhos de participação, em especial o Conselho Escolar (“órgão máximo em nível de escola”, conforme o Art. 2º da Lei Municipal nº 2263/2004), precisam existir não apenas sob o ponto de vista formal, mas “de fato”. Tarefa árdua, por certo, pois requer superar uma longa e poderosa tradição patriarcal e clientelista presente nas estruturas e relações de poder, inclusive naqueles espaços, como a escola, que deveriam propugnar pela transformação social. Finalmente, vale lembrar, “democracia” e “participação” não são sinônimo de “confusão” de papéis. A “César o que é de César”… Cada ator a orbitar em torno da escola tem um papel a cumprir, com seus respectivos direitos e obrigações, muitos deles previstos na própria legislação. Uma escola “democrática e participativa” é aquela em que não apenas reconhece tais idiossincrasias, mas as respeita e exige as respostas esperadas de cada membro da comunidade escolar. Daí a importância de Propostas Político-Pedagógicas e Regimentos claras, conhecidas e factíveis, capazes de servirem de norte às ações pedagógicas e administrativas junto às instituições de ensino.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

DIA INTERNACIONAL DE COMBATE À CORRUPÇÃO


DIA INTERNACIONAL DE COMBATE À CORRUPÇÃO
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br


O dia 09 de dezembro foi escolhido pela Organização das Nações Unidas como Dia Internacional de Combate à Corrupção. Iniciativa esta interessante e seguida por muitos países, estados e municípios. Cachoeirinha, por exemplo, por meio da Lei Municipal nº 4574, de 2019, decidiu por fazer desse Dia um momento de reflexão voltada à conscientização dos munícipes sobre a importância do controle social e da necessidade de ampliação dos instrumentos destinados ao combate à impunidade. O que é, afinal, “corrupção”? Inúmeras são as formas de defini-la, tamanha sua variedade e complexidade. Dentre os conceitos interessantes acerca do termo, destaco aqueles que associam a corrupção à “deterioração”, “putrefação”, “modificação ou adulteração das características originais de algo”. Não por acaso, a corrupção é fétida, exala o mau cheiro da miséria criada e aprofundada por ela. Mesmo a aparente limpeza dos corredores e gabinetes de palácios, prefeituras, assembleias, câmaras e tribunais é incapaz de neutralizar o azedume cadavérico que brota das práticas espúrias que, histórica e diuturnamente, maculam as relações de poder. A corrupção, sabemos, é um câncer em avançado processo de metástase, que corrói o tecido social e lança por terra qualquer esperança de dias melhores. Mostra-se presente e estruturada nas organizações governamentais, intergovernamentais (ONU, por exemplo), esportivas (FIFA, CBF, etc.), em governos dos mais distintos matizes ideológicos (liberais, neoliberais, socialistas, sociais-democratas, “direita”, “centro”, “esquerda”…), partidos políticos, sindicatos patronais e de trabalhadores, Poderes do Estado (Legislativo, Executivo, Judiciário), órgãos de controladoria (Tribunais de Contas, corregedorias), agências ditas “reguladoras”, conselhos de toda ordem, empresas públicas e privadas… A lista é interminável, como o são as formas em que a corrupção se manifesta. Feito camaleão, essa praga faz uso de um diabólico mimetismo para se reforçar e perpetuar em nosso meio. Coopta pessoas e as corrompe sem nenhum pudor e não o conseguindo, as aniquila. Simples assim! Faz uso dos aparelhos do Estado, impudica e descaradamente, sob o manto da flagrante omissão – quando não o conluio – daqueles que, por dever ético e/ou legal, deveriam zelar pelos princípios republicanos. A corrupção, por certo, é a mãe dos maiores e mais cruéis males da humanidade. Ela mata, oprime, humilha, aniquila sonhos, destrói famílias, apodrece relações. Ao beneficiar alguns poucos, prejudica a imensa maioria. O ouro que reveste a pocilga dos corruptos, muitos deles togados e engravatados, contrasta com a desesperança das verdadeiras joias (muitas delas iletradas, calejadas, desdentadas) a madrugarem nas filas de hospitais, a chorarem sobre o corpo do ente querido vítima da insegurança e incompetência públicas, a vegetarem em meio a um ensino pífio, a disputarem espaço num transporte sem o mínimo de conforto, a buscarem o pão necessário à subsistência da família. A corrupção se retroalimenta por meio, também, de práticas que por vezes soam pequenas. Manifesta-se nas relações familiares, de amigos, de trabalho, de consumo, na escola… Como identificá-la? Como combatê-la? Inexiste receita, contudo o caminho passa necessária e obrigatoriamente pelo “meu”, pelo “teu”, pelo “nosso” posicionamento ético. Este precisa ser categórico, não tergiversar, ser inegociável ainda que prejudicial aos interesses particulares. Somente assim construiremos um país melhor, um estado menos injusto e uma cidade verdadeiramente para todos!

domingo, 27 de outubro de 2019

O SACRIFÍCIO DE ISAQUE

O SACRIFÍCIO DE ISAQUE
Prof. Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br

Passado algum tempo, Deus pôs Abraão à prova, dizendo-lhe: "Abraão!" Ele respondeu: "Eis-me aqui". Então disse Deus: "Tome seu filho, seu único filho, Isaque, a quem você ama, e vá para a região de Moriá. Sacrifique-o ali como holocausto num dos montes que lhe indicarei". Na manhã seguinte, Abraão levantou-se e preparou o seu jumento. Levou consigo dois de seus servos e Isaque seu filho. Depois de cortar lenha para o holocausto, partiu em direção ao lugar que Deus lhe havia indicado. No terceiro dia de viagem, Abraão olhou e viu o lugar ao longe. Disse ele a seus servos: "Fiquem aqui com o jumento enquanto eu e o rapaz vamos até lá. Depois de adorarmos, voltaremos". Abraão pegou a lenha para o holocausto e a colocou nos ombros de seu filho Isaque, e ele mesmo levou as brasas para o fogo, e a faca. E caminhando os dois juntos, Isaque disse a seu pai Abraão: "Meu pai!" "Sim, meu filho", respondeu Abraão. Isaque perguntou: "As brasas e a lenha estão aqui, mas onde está o cordeiro para o holocausto?". Respondeu Abraão: "Deus mesmo há de prover o cordeiro para o holocausto, meu filho". E os dois continuaram a caminhar juntos. Quando chegaram ao lugar que Deus lhe havia indicado, Abraão construiu um altar e sobre ele arrumou a lenha. Amarrou seu filho Isaque e o colocou sobre o altar, em cima da lenha. Então estendeu a mão e pegou a faca para sacrificar seu filho. Mas o Anjo do Senhor o chamou do céu: "Abraão! Abraão!" "Eis-me aqui", respondeu ele. "Não toque no rapaz", disse o Anjo. "Não lhe faça nada. Agora sei que você teme a Deus, porque não me negou seu filho, o seu único filho." Abraão ergueu os olhos e viu um carneiro preso pelos chifres num arbusto. Foi lá, pegou-o e sacrificou-o como holocausto em lugar de seu filho. Gênesis 22:1-13

               

                O que dizer acerca da narrativa acima? O sacrifício de Isaque, ao que tudo indica, era uma demonstração de inabalável fé. Apesar do amor por seu filho, Abraão não titubeou ao levar o rebento à Moriá. A atitude do Patriarca rendeu-lhe incontáveis frutos, fazendo dele – até os dias de hoje – referência de fé entre inúmeras denominações religiosas. Quanto a nós? Quais têm sido nossos sacrifícios? Para onde temos levado e oferecido nosso Isaque? São outros tempos, outras intenções, outras consequências. O que vemos é nosso Isaque abandonado à própria sorte, estendido sobre a pedra fria, enquanto a lâmina certeira do cutelo desce, violentamente, em direção à cabeça do holocausto. Sacrifício para quem? Para quê? Pelo visto, não sabemos. Quanto deve ter sido difícil para Abraão a interminável travessia até o local do sacrifício. Quanta coisa deve ter passado pela cabeça do Patriarca: lembranças, planos, dúvidas... Três dias de aflição. Contudo, a confiança do “pai de muitas nações” parecia superar tudo aquilo: "Deus mesmo há de prover o cordeiro para o holocausto, meu filho". Nosso Isaque, ao contrário, tem sido destinado ao sacrifício sem que percebamos. São anos caminhando a esmo, à espreita da morte. As cabeças curvadas, atentas à tela do celular, parecem anestesiadas, tornando-os, pai e filho, insensíveis aos inúmeros perigos da estrada. Movido pela “proteção” doentia, que aniquila a autonomia e priva o rebento das ferramentas necessárias à vida, carregamos nós mesmos a lenha, enquanto sobre os ombros de nosso Isaque depositamos, ainda que inconscientemente, nossa mais profunda desatenção. Vamos, feito ébrios, tutor e tutelado, serpenteando em meio ao caminho, sem perceber as feridas provocadas pelos espinhos contaminados pelo pernicioso relativismo a mascarar o desprezo à vida. Mesmo o sangue a verter pelo franzino corpo de nosso Isaque mostra-se insuficiente para romper a letargia de quem por ele deveria zelar. Enquanto brotam e se multiplicam os sinais de alguém que definha, prevalece a indiferença, ainda que não intencional. Qual será o fim dessa história? A mesma do Patriarca? Quem há de salvar nosso Isaque? Sob o comando de quem está o cutelo? Ajamos enquanto há tempo!

quarta-feira, 12 de junho de 2019

SUPORTABILIDADE: PARA QUEM?

SUPORTABILIDADE: PARA QUEM?
Prof. Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br



            Os tempos são outros. Não faz muito, pessoas com deficiência eram, muito comumente, “invisíveis” à sociedade. Alijadas da escola, por exemplo, pouco conheciam senão as paredes da própria casa, só não menores e mais descoloridamente frias do que o acolhimento neste mundão de Deus. Verdadeiros “bichinhos da goiaba”, a presença delas soava como inoportuna, incômoda numa sociedade autointitulada de “normal”. Pareciam encarnar a triste história do Corcunda de Notre Dame, porém muito mais cruel e sombria, dado que verdadeira. Enclausurados ficavam não apenas os seus corpos – não raras vezes atrofiados pela indiferença e ignorância alheias –, mas seus sonhos e potencialidades. Aos poucos, contudo, tensionada pela incansável luta e teimosia de algumas pessoas e entidades da sociedade civil organizada, a legislação passou a contemplar os direitos desse público e importantes políticas públicas foram se estabelecendo. A Constituição de 1988 não deixa dúvidas quanto ao tratamento a ser dado às pessoas com deficiência:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais[1] da República Federativa do Brasil:
[…]
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.


            O acolhimento às pessoas com deficiência é, portanto, basilar na própria existência da República brasileira. A Carta traz, ainda:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

           
            Às pessoas com deficiência foi garantida não apenas a igualdade – princípio fundamental da dignidade da pessoa humana –, mas proteção especial por parte do Poder Público, conforme se lê:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
[…]
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;  

           
            No que tange à educação, a garantia não destoa:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
[…]
III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;
[…]
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;
[...]


            A legislação pátria é farta em preceitos garantidores e assecuratórios de direitos educacionais atinentes às pessoas com deficiência. Exemplos disso são a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Federal nº 9.394/1996), bem como os Estatutos da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069/1990) e da Pessoa com Deficiência (Lei Federal nº 13.146/2015). Este último, diga-se de passagem, já em seu primeiro Artigo, diz:

Art. 1º É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.


            Lê-se, ainda:

Art. 27. A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem.

            O Estatuto acima (Lei nº 13.146/2015) não deixa dúvidas, primeiro, quanto ao direito do educando com deficiência e, segundo, quanto à necessidade de um olhar diferenciado em relação a ele. Na esfera do Município, vê-se a mesma preocupação. O Plano Municipal de Educação, alterado pela Lei nº 4040/2015, dentre suas “metas”, traz:

Meta 4: Universalizar, para a população de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino, com a garantia de sistema educacional inclusivo, de salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados, públicos ou conveniados.
Estratégias:
[…]
Garantir a oferta de educação inclusiva com qualidade, de acordo com a suportabilidade de tempo de permanência no espaço em sala de aula, respeitando a individualidade e necessidades de cada aluno.
[...]

            Resta claro, portanto, que a suportabilidade prevista acima é “do” e “para” o educando, não para o professor, escola e/ou para família. Assim, eventual redução no tempo de permanência do aluno com deficiência deve estar amparada na necessidade e bem-estar do educando e não de terceiros. Quaisquer outros argumentos (falta de recursos humanos, precariedade física das instituições escolares, carência técnica dos profissionais no ambiente escolar, etc.), provavelmente, restarão inconsistentes ante eventual ação judicial movida em nome dos alunos com deficiência para que permaneçam na escola durante todo o turno. O critério fundante para suportabilidade deve ser técnico, respaldado, portanto, em avaliações oriundas de profissionais devidamente habilitados. Não cabe à escola ser depósito de pessoas (quase sempre crianças) com deficiência, a servir de “família substituta”, enquanto os genitores dão conta de seus afazeres, por mais nobres que sejam. Tampouco, a escola deve ser espaço de exclusão e insensibilidade. Sua função é, sobretudo, pedagógica! Tem sim o condão de “cuidar”, este, contudo, subsidiário da função precípua da escola, a de “educar”.

            A decisão pela redução no tempo de permanência na escola do aluno com deficiência (suportabilidade) está para o profissional do SAEE (Serviço de Atendimento Educacional Especializado) assim como o receituário está para o médico. A competência para decidir por tal redução é do profissional especializado (salvo se, de forma fundamentada, for atacada por outra decisão de melhor ou maior valor), não da família, do conselheiro tutelar ou de pessoas “estranhas” à escola. As decisões e encaminhamentos desta última precisam ser respeitadas e socialmente reconhecidas, desde que pedagógica e legalmente justas.

            Vale lembrar que a própria legislação reconhece os limites do “possível” e do “razoável” no que tange ao atendimento à pessoa com deficiência. Um é o mundo “real” e outro o “ideal”. O Estatuto da Pessoa com Deficiência, por exemplo, em seu Art. 3º, VI, ao tratar das “adaptações razoáveis”, conceitua:

Art. 3º Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se:
[...]
VI - adaptações razoáveis: adaptações, modificações e ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional e indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que a pessoa com deficiência possa gozar ou exercer, em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos e liberdades fundamentais.

            Infelizmente, em que pese as boas intenções, tem sido comum e crescente um processo de “desautorização” e enfraquecimento da autoridade (aqui entendida sob o aspecto técnico) da escola e de seus agentes. Não que suas decisões estejam a salvo de críticas e contestações, mas que se preserve a premissa de que ninguém melhor do que os profissionais da educação (professores, especialistas, etc.) para dela tratar e sobre ela opinar.



[1]     Todos os grifos são meus. 

quarta-feira, 5 de junho de 2019

O CIRCO

O CIRCO
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br




            Noutros tempos, era lugar de diversão, de indescritível alegria, especialmente por parte dos de tenra idade. Ali, malabaristas disputavam espaço com animais e seus adestradores, palhaços e equilibristas. Bailarinas, enfiadas em suas roupas justas, a levitar com suas sapatilhas aladas. Destoando dos risos, apenas a inconfundível voz dos vendedores das maçãs do amor, algodão doce, pipoca e refrigerante. Sob a luz do picadeiro, os saltimbancos com suas brincadeiras a transformarem aquele momento em algo impar e inesquecível. Tempos bons em que o circo era certeza de boas risadas. Querem hoje, e não são poucos, vê-lo pegar fogo. Imprudente e irresponsavelmente, esquecem que sob suas lonas jaz, sim, um que outro desafeto, mas, também, incontáveis amigos, filhos, irmãos e companheiros. Parecem esquecer que o fogo é “democrático”, a todos queima indistintamente, pretos e brancos, cristãos e ateus, letrados e analfabetos, liberais e socialistas. Alimentadas pelo ódio e desprezo, as chamas vão ceifando vidas, evaporando a esperança e transformando em cinzas as relações. Não demora, pouco restará senão um vale de ossos secos, onde a conversa franca, o diálogo humanizatório e a companhia prazerosa serão coisas do passado. Ainda ontem, quando todos se sentiam pertencentes ao circo, o simples monóculo era suficiente para vislumbrar o mundo. Hoje, os tempos são outros. As lentes, por mais numerosas e potentes que sejam, vão, a cada dia, ofuscando nossa visão. Já não vemos e nem tampouco reconhecemos o outro. Não vemos a nós mesmos e nem nos reconhecemos. Involuímos. Quiçá seja a fumaça do circo, asfixiante, espessa, nauseante. Tamanha toxidade contagia, produzindo cenas de horror, um inferno dantesco, sombrio, desanimador. Escasseiam-se os pontos de fuga e multiplicam-se os gritos de socorro. Por todo lado corpos que, como copos vazios, por mais coloridos que sejam, há muito perderam o próprio sentido. Pobres recipientes, secos e sequiosos, já nada oferecem e nem tampouco recebem. Não tarda, o calor do fogo deles arrancará a frágil e fugaz beleza. Pura vaidade.  Enquanto arde o circo, as estruturas, até então tidas por sólidas, vão se desmanchando, sepultando valores, moral, leis, tradições… Na hora do aperto, um que outro -  tomado, quem sabe, por uma esquizofrenia momentânea derivada do caos – esboça teses de “direita” e de “esquerda”, enquanto segue cambaleante, sem norte, tropeçando nos corpos sem vida. As cortinas, que antes se abriam a marcarem os atos da peça, já não existem. Consumidas pelo fogo, não passam de fiapos incandescentes a denunciarem o ocaso da vida. O que antes era um circo vai se transformando numa grande pira, alimentada pelas páginas de Smith e de Marx, de Freire e de Carvalho, instigada por corpos de todos os tamanhos e idades, de todos os gêneros, de todas as crenças e ideologias. A fumaça escura vai formando uma triste coluna a alcançar o céu, exalando o fétido odor da vaidade, da intolerância, do egocentrismo e da indiferença. Saudade do velho circo, não daquele da política dos Césares, alienante e sarcástico, nem tampouco do espetáculo piegas e descompromissado com a sorte alheia, mas do circo das boas utopias, da convivência, da alegria, da confiança, do diálogo, da cumplicidade frente ao sentimento daqueles que acostumamos a chamar de “terceiros”, como se “primeiros” fôssemos. 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

EJA, NÃO É PARA QUALQUER UM


EJA, NÃO É PARA QUALQUER UM
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br



A Educação de Jovens e Adultos (EJA), não raras vezes, é vista como uma espécie de “sobra” da escola. Comum é ver a EJA servir de “depósito” de alunos multirrepetentes e/ou indisciplinados, além de um “quebra-galho” para professores destituídos do perfil necessário e esperado. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em seu Art. 37, não deixa dúvidas quanto ao público a ser atendido pela modalidade:

Art. 37.  A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos nos ensinos fundamental e médio na idade própria1 e constituirá instrumento para a educação e a aprendizagem ao longo da vida. 
[…]
§ 2º O Poder Público viabilizará e estimulará o acesso e a permanência do trabalhador na escola, mediante ações integradas e complementares entre si.


A EJA existe, prioritariamente, para atender, portanto, alunos com gritante descompasso idade-série (Ano), desde que respeitado o limite mínimo etário previsto na legislação, a saber 15 anos no Fundamental e 18 no Ensino Médio. Assim, a indisciplina escolar não deve ser a razão da transferência do educando do Ensino Regular para a EJA, até porque inexiste qualquer garantia de sucesso no que tange à mudança de comportamento. Questões disciplinares – independentemente da etapa, nível ou modalidade de ensino – devem ser resolvidas no campo da prevenção, diálogo e, se necessário, aplicação de medidas e “sanções” previstas nos documentos norteadores da escola (PPP, Regimento, Estatuto Disciplinar, etc.). Da mesma forma a repetência. Esta, salvo em casos excepcionais, não deve servir de embasamento – ainda que velado – para direcionamento do aluno do Regular para EJA, sob o risco de agravarmos problemas como o da aprendizagem e da autoestima. Por outro lado, há de se ter cuidado para não fazermos da EJA uma espécie de peneira eugênica a afastar todos aqueles que não se enquadram nos moldes e padrões tidos como “normais” e “aceitáveis” pela Direção ou corpo docente que trabalha com essa modalidade. A busca de uma escola ideal, ascética, muito provavelmente redundará numa enorme frustração, estando fadada ao fracasso e distanciamento da comunidade que dela tanto depende e precisa. A EJA tem como seu principal (não exclusivo…) público-alvo, como já dito, jovens e adultos que, por algum motivo, não conseguiram acessar ou dar continuidade aos estudos na época “certa” (!?). Na prática, contudo, isso significa, muitas vezes, lidar com jovens e adultos que foram cuspidos para fora dos muros escolares por limitações de aprendizagem, problemas socioeconômicos, dificuldades emocionais, indisciplina, etc.. Trata-se de uma gente excluída, em maior ou menor grau. Contudo, jovens e adultos que, em que pese todas as agruras e dificuldades, mostram-se teimosos em acreditar na possibilidade da mudança por meio da educação. Gente sonhadora, esperançosa, sequiosa por uma vida menos dura. Um público marcado pelos mais diversos tipos e nuances de vulnerabilidade. Portanto, jovens e adultos merecedores de um olhar diferenciado, acolhedor, respeitoso e compreensivo.
O professor da EJA precisa mostrar-se atento e sensível frente à realidade acima. Somado à competência acadêmica, deve ser capaz de lançar seu “olhar viajante” sobre as idiossincrasias típicas da realidade que envolve a Educação de Jovens e Adultos. Não vale aqui o “puxadinho”, a “gambiarra”, o “jeitinho”. Exige-se profissionalismo, seriedade e comprometimento com o complexo processo ensino-aprendizagem dessa modalidade. Tão importante quanto a técnica, a metodologia e o domínio do conteúdo é a construção e fortalecimento dos vínculos afetivos. Estes representam condição sine qua non na arte do ensinar e do aprender, ainda mais quando diante de pessoas fragilizadas pelos incontáveis fracassos e “peças” criadas pela vida. Acuidades visual e auditiva são essenciais ao educador que trabalha com a EJA. Não necessariamente aquelas acuidades que passam pelos sentidos do corpo, mas sobretudo as que nascem da alma. O professor da EJA precisa ouvir o que diz o aluno, mostrar-se disposto a partilhar as inúmeras experiências de vida, medos e sonhos que tangenciam a história de cada educando.
1Todos os grifos são meus.

FICA A DICA: NOME SOCIAL


FICA A DICA!
Prof. Gilvan Teixeira
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Vem crescendo o número de demandas, junto às escolas, de uso do chamado “nome social” por aqueles que não se identificam com o sexo biológico. Não são poucos os casos de instituições de ensino que impedem ou tentam impedir a inscrição do nome social nos registros oficiais, como boletins e cadernos de chamada. Tal postura nasce, por vezes, do preconceito – ainda que velado – em relação às escolhas e opções alheias. Porém, é muito comum que a resistência seja fruto da desinformação quanto à legislação existente, somada ao temor e insegurança de cometer equívocos que possam gerar dúvidas e/ou confusão documental quanto à vida escolar do educando. Apesar de compreensível esta última “justificativa”, ela precisa ser superada. A comunidade LGBTI não pode e nem deve seguir sendo penalizada por eventuais controvérsias ou insegurança jurídica. Ainda que imperfeita, a legislação atinente aos direitos desses cidadãos e cidadãs avançou muito. Exemplo disso é a Resolução nº 1/2018 do Conselho Nacional de Educação (CNE/CP), que “define o uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares”. Reza o documento1:

Art. 1º Na elaboração e implementação de suas propostas curriculares e projetos pedagógicos, os sistemas de ensino e as escolas de educação básica brasileiras devem assegurar diretrizes e práticas com o objetivo de combater quaisquer formas de discriminação em função de orientação sexual e identidade de gênero de estudantes, professores, gestores, funcionários e respectivos familiares.

Art. 2º Fica instituída, por meio da presente Resolução, a possibilidade de uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares da educação básica.

Art. 3º Alunos maiores de 18 (dezoito) anos podem solicitar o uso do nome social durante a matrícula ou a qualquer momento sem a necessidade de mediação.

Art. 4º Alunos menores de 18 (dezoito) anos podem solicitar o uso do nome social durante a matrícula ou a qualquer momento, por meio de seus representantes legais, em conformidade com o disposto no artigo 1.690 do Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Como já dito, eventuais controvérsias – como a trazida pelo Art. 4º do diploma supra2 – não devem obstaculizar a garantia ao acesso e permanência nos bancos escolares daqueles que fazem ou queiram fazer uso do nome social. O município de Cachoeirinha (RS), nesse mesmo diapasão, por meio do respectivo Conselho de Educação, ao que tudo indica foi pioneiro no que tange à garantia e respeito aos direitos da comunidade LGBTI. O Parecer CME 05/2011, em sua Conclusão, traz:

O Conselho Municipal de Educação orienta que as instituições que compõem o Sistema Municipal de Ensino de Cachoeirinha concedam aos travestis e transexuais, maiores de 18 (dezoito) anos, o direito de se manifestarem por escrito, no ato da matrícula ou ao longo do ano letivo, seu interesse pela inclusão do nome social nos documentos internos da escola, excetuando-se o Histórico Escolar e as Atas Finais.

No caso de crianças e adolescentes a inclusão do nome social deve ocorrer mediante requerimento assinado pelos pais e/ou responsáveis legais.


Ao que tudo indica, a questão do nome social nos documentos e registros da escola está pacificada, restando pouca ou nenhuma dúvida no campo jurídico3. Por outro lado, existe ainda um Saara a ser percorrido quanto ao pleno exercício da cidadania da comunidade LGBTI junto às instituições de ensino país afora. Exemplo disso é o acesso aos banheiros e vestiários. O assunto provoca, por hora, grande celeuma. O próprio Judiciário tem titubeado frente a questão. Tramita no STF, há alguns anos, um processo envolvendo uma transexual que, ao fazer uso do banheiro feminino, foi agredida física e psicologicamente. Alguns ministros foram categóricos ao defenderem o direito da transexual:
Relator do caso, Luís Roberto Barroso afirmou que dignidade é um valor “intrínseco” a toda e qualquer pessoa, sendo dever do Estado garantir sua efetividade conforme as escolhas de cada um.
Nenhuma pessoa é um meio, todas as pessoas são um fim em si mesmas, ninguém neste mundo é um meio para satisfação de metas coletivas ou para satisfação das convicções ou dos interesses dos outros”, disse o ministro, parafraseando o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804).
Ao analisar o caso concreto, ponderou que o “suposto constrangimento” causado às demais mulheres num banheiro feminino pela presença de uma transexual “não é comparável ao mal estar” suportado por ela se tivesse que usar o banheiro masculino4.

Outros ministros, por sua vez, opinaram em sentido diverso:
Presidente da Corte, o ministro Ricardo Lewandowski, sem manifestar sua posição, também se disse “preocupado” com a decisão.
Eu fiquei um pouco preocupado também com a proteção da intimidade e da privacidade de mulheres e crianças do sexo feminino que estão numa situação de extrema vulnerabilidade tanto do ponto de vista quanto psicológico quando estão no banheiro”, afirmou.

Tamanha divergência não surpreende, pois reflete – ao menos em parte – os posicionamentos e pontos de vista da própria sociedade. O tema, por demais complexo, precisa ser discutido num ambiente de diálogo, respeito e sensatez. A Resolução 12/2015 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais5, por sua vez, parece não ter dúvidas quanto ao assunto:
Art. 6º - Deve ser garantido o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade de gênero de cada sujeito.

O referido documento vai além:
Art. 7º - Caso haja distinções quanto ao uso de uniformes e demais elementos de indumentária, deve ser facultado o uso de vestimentas conforme a identidade de gênero de cada sujeito.

A discussão vai longe, como se vê, pois que em jogo questões jurídicas, éticas, morais, religiosas, etc.. A única certeza é de que vivemos uma nova era, onde – cada vez mais – os direitos das chamadas minorias são discutidos e reconhecidos, tempo em que as diferenças precisam ser vistas como pontes facilitadoras do diálogo e promoção da dignidade da pessoa humana.


1Todos os grifos são meus.
2A Resolução nº 12/2015, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, traz:
Art. 8º A garantia do reconhecimento da identidade de gênero deve ser estendida também a estudantes adolescentes, sem que seja obrigatória autorização do responsável.
3Obviamente, no campo das relações pessoais e de poder, ainda existe um longo caminho a ser percorrido contra o preconceito e resistência frente aos direitos da comunidade LGBTI.
5Ligado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

SUPERANDO O MANIQUEÍSMO


SUPERANDO O MANIQUEÍSMO
Gilvan Teixeira
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     O término da campanha presidencial de 2018, assim como a posse do novo mandatário não foi capaz de sepultar a flagrante e danosa polarização político-ideológica. Sobram, ainda, discursos vazios, raivosos e recheados de chavões surrados que mais fazem lembrar aquelas roupas cheirando a mofo. O país precisa, urgentemente, superar o enfadonho e pernicioso maniqueísmo que atravanca o desenvolvimento e impede a necessária “união nacional” em torno daquilo que é, de fato, urgente e necessário ser combatido. A desigualdade social é fruto, sobretudo, de uma ignóbil distribuição de renda. Esta, por sua vez, vem sendo alimentada e reforçada pelos vícios que maculam a história deste país, garantindo, por exemplo, privilégios a determinados indivíduos, famílias e/ou grupos. O arremedo de República que possuímos jamais conseguiu romper com a cleptocracia, o clientelismo e a confusão entre interesses público e privado. O Judiciário e o Legislativo – até por contarem com orçamentos próprios (como se isso fosse garantia de independência de Poderes…) - seguem completamente descolados da triste e indecorosa realidade de nosso povo. Mostram-se incapazes de cumprirem com seus papéis constitucionais, mais soando como um peso morto para o contribuinte. Contaminados por interesses corporativos e espúrios, bem como por conchavos e apadrinhamentos, tais Poderes há muito convivem com o descrédito junto à população. Quanto ao Executivo… Verdadeiro desastre, onde a má gestão confunde-se e mistura-se à incompetência, desonestidade, descompromisso com a verdade e com as normas mais elementares da Administração Pública. Não por acaso, o Estado brasileiro (Executivo, Legislativo e Judiciário, em todos os seus níveis) chegou onde chegou. Hoje, tem se mostrado completamente desnecessário, pois que destituído de sentido. Tornou-se o maior problema do país, insuportável fardo nas costas do contribuinte. Este – por meio de uma carga tributária insana e irresponsável – paga, paga e paga, sem o mínimo retorno que se espera de um ente público sério e comprometido. Assim, saúde, segurança, educação, infraestrutura seguem jogadas às moscas, com imensuráveis prejuízos à população, especialmente daquelas camadas mais pobres. Percebe-se, portanto, que são problemas e desafios concretos a serem atacados e resolvidos. Discursos mais ao centro, à direita ou á esquerda, por certo, são incapazes de resolverem e desatarem os nós existentes. Pelo contrário, muito comumente, desviam do foco e ajudam a reproduzir e perpetuar as mazelas existentes. O que se deseja não é a existência de apenas um “ponto de vista”, mas sim um pluralismo inteligente, equilibrado, responsável e comprometido com o bem comum.

     Apoiar a livre iniciativa e o empreendedorismo, por exemplo, não significa abrir mão da justiça social. Ser simpático à menor intervenção do Estado na economia e na vida das pessoas não pressupõe descompromisso com o interesse público. Posicionar-se favorável ou contrariamente à flexibilização da posse de armas, à redução da maioridade penal ou ao aborto, por exemplo, não atesta a idoneidade ou grau de cidadania de quem quer que seja. São posicionamentos individuais e/ou coletivos que precisam ser ouvidos, discutidos e respeitados. As divergências existentes são salutares e necessárias, porém devem convergir na mesma direção, qual seja, a da superação das vergonhosas mazelas que, como metástase, têm levado o país ao caos. Precisamos ter clareza acerca dos inimigos que nos são comuns: corrupção, malversação do dinheiro público, confusão entre público e privado, privilégios corporativos, péssima e criminosa qualidade dos serviços públicos, violência de toda sorte, sucateamento e precariedade da infraestrutura, desemprego… Demandas, portanto, não faltam. São problemas tão graves quanto complexos a exigirem muita competência, organização e trabalho para superá-los.