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domingo, 13 de novembro de 2011

TETÊ, UMA MULHER DE VISÃO

TETÊ, UMA MULHER DE VISÃO
Gilvan Teixeira


                Não faz muito, enterramos uma querida tia. Tetê há muitos anos convivia com a cegueira, limitação que a impossibilitava de enxergar, mas não de “ver” de forma muito mais clara do que muitos que possuem olhos, porém não vêem. Tia Tetê, casada com o velho Mano, era uma mulher feliz. Sim, feliz e sábia. Ensinara as filhas não apenas com palavras, mas acima de tudo com ações marcadas pelo respeito, ética, honestidade, gentileza, solidariedade. Não foram poucos os por ela auxiliados a transporem a estrada da vida. Via, como poucos, os sinais vermelhos impostos pela vida, respeitando-os, porém sem se deixar derrotar pelas agruras de um pretenso destino . Tetê parecia ter suprido a deficiência visual com uma invejável capacidade auditiva. Não ouvia, auscultava. Sons que eram imperceptíveis aos ditos “normais”, para Tia Tetê diziam muito. Outros sentidos não deixavam por menos. O que dizer do tato. Aquela mulher franzina, de voz calma, dissecava tudo a sua volta. Sentia a forma, a textura, o volume, a massa... Parecia saber até a cor. Não a conhecessem, diriam que enxergava, tal era sua capacidade de descrever, em detalhes, tudo a sua volta. A mulherzinha era tinhosa. Porém, o que mais chamava atenção era a memória daquela senhora, aparentemente frágil. Datas de aniversário, sabia todas, inclusive as do que já haviam partido desta para uma melhor. Fatos históricos, receitas culinárias, causos antigos, “segredos” de família... Até a tabela do Brasileirão. Seu único pecado era ser torcedora do Inter. Talvez aqui, seu único ponto em comum com o Mano. Fora isso, vivia a ralhar com seu velho companheiro. Estava nos genes. A mãe, Dona Ina, era a mesma coisa. Não poupava o coitado do Juca. O que eram, porém, aquelas rusgas perto do amor que unia a Tia Tetê e o Tio Mano durante todos aqueles anos? Mais de cinqüenta. Um era a bengala do outro. Amavam-se. O que mais incomodava a Tetê era a maldade humana. A pequenez da alma. A urdidura que enriquece alguns poucos em detrimento da maioria. Entendia de política como poucos. Dava seus pitacos. Queria ver o Sarney e o FHC, por exemplo, bem longe. Para ela, o Congresso era uma pocilga. Não entendia, melhor, não aceitava que homens e mulheres públicos, todos a falarem em nome do “povo” se prostituíssem por sobre um leito tomado de lama, malversação de recursos, confusão entre o público e o privado. Não admitia a promiscuidade partidária, nem tampouco a astronômica diferença entre discurso pré-eleitoral e a práxis de gabinete. As práticas espúrias tão comuns no cenário político-administrativo de hoje, para Tetê eram imperdoáveis. Afinal, mesmo cega, parca em recursos, jamais havia se apossado do que não lhe pertencia. Assim educara as filhas. Mesmo nas horas mais difíceis, quando a morte batia à porta, Tia Tetê em nenhum momento buscou burlar a vida, seja a sua, seja a de outrem. Tetê, saudosa Tia, que sua vida sirva de exemplo neste mundo tão pobre de espírito. Fica não apenas a saudade, mas um exemplo de virtude.

Um comentário:

  1. A dizer sobre este texto, apenas "amém". Virtude, hoje em dia, é como ouro, rubis, safiras: existem, porém são raros. Outro excelente texto. Genial.

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