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quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O GRENAL QUE NÃO TERMINOU

O GRENAL QUE NÃO TERMINOU
Gilvan



            Ainda esses dias, meu guri – no auge dos seus oito anos – havia dito algo que, inicialmente, parecia sem nexo algum. Porém, pensando bem, achei que a “gafe” poderia dar ensejo a uma história. Dizia ele que o primeiro grenal teria sido em 1544. Coitado, virou motivo de chacota da irmã mais velha, esta alucinada por livros. Meio sem jeito, buscando desviar o assunto, deu-se conta o pobre Matheus da aparente asneira. Ora, 1544 era uma data remota em demasia – por maior que fosse o exagero – para ocorrência da mais conhecida rixa do mundo futebolístico. Será?

***

            À época, o que é hoje o Rio Grande do Sul não passava de uma terra a ser desbravada. Ocupavam esta área algumas tribos indígenas, grupos estes que rivalizavam entre si. Durante gerações, charruas e minuanos se digladiavam feito ximangos e maragatos. Tudo era motivo para disputa: mulheres, espaço, comida. A situação tornara-se de tal forma insustentável que o simples ato de banhar-se no Grande Lago, hoje Guaíba, era por demais arriscado. Certa feita a filha do cacique minuano mergulhava nas lânguidas águas, nua em pêlo, quando sentira um par de olhos posto sobre ela. Assustada, buscou refúgio junto a alguns igarapés, na infrutífera tentativa de esquivar-se do suposto indolente. Mal sabia ela que o dono do olhar era o jovem herdeiro da tribo inimiga. Mais parecia armação do destino. Ironia dos deuses. Não fora por falta de aviso dos anciãos de ambas as tribos, pois que há gerações advertiam os mais jovens de jamais se aproximarem do lugar. Era arriscado. Perigoso. Muitos eram os causos que buscavam associar o Grande Lago a seres mitológicos e assustadores. Contudo, ao que parece, os jovens haviam se deixado levar pelo espírito aventureiro que move os corações dos mais moços. Uma falha que, talvez, pusesse em risco não uma, mas duas nações inteiras. Apesar dos esforços de ambos – dela, tentando esconder sua nudez e dele, buscando não se deixar ver por aquela bela jovem –, o que parecia impensável aconteceu. Amor à primeira vista. Apesar das atávicas barreiras culturais e lingüísticas, em que pese a histórica rivalidade entre os povos, os corações entrelaçaram-se. O simples olhar era mais do que suficiente para comunicar o que pensavam, o que sentiam... Ruborizada, a jovem ficou inerte. Só sorria. Ele, por sua vez, não conseguia disfarçar o tum-tum acelerado a batucar-lhe o peito. A escassez de roupa não os inibia, pois que a natureza os tornava puros, alheios aos pecados que, mais tarde, os europeus introduziriam nestas terras. Não se tocavam. Guardavam alguma distância, insuficiente para cada qual perceber as alterações no corpo do outro. Ainda sorrindo, despediram-se num breve aceno de cabeça. Não demorou muito para os anciãos desvelarem o segredo. A paixão dos jovens era notória. Não diziam coisa com coisa. A cabeça parecia descolar do corpo. Os olhos miravam o nada. A pergunta que todos faziam, em ambas as tribos: quem era ele(a)? Por óbvio, não imaginavam o que o destino lhes reservava. A pajelança até que tentou buscar a resposta nas forças da natureza. Sem sucesso. A mãe terra e os irmãos pássaros mantinham-se mudos, parece que decididos pela cumplicidade naquele amor proibido. Quem sabe, ali a chance de pôr fim às antigas rixas e batalhas a mancharem de sangue os verdes campos enfiados entre os morros do que é hoje a capital gaúcha. O coração do índio, contudo, parecia decidido a não comungar da mesma idéia. Ao contrário. Ao saberem da intenção dos jovens, as tribos puseram-se em pé de guerra. Todos os guerreiros pintados, andando em círculos, num frenesi interminável. A música era cadenciada pelo som dos tambores improvisados. Um, dois, três dias... Preparação e invocação das divindades para a proteção contra o pérfido inimigo. Finalmente, o grande dia. O “juízo final” dos pampas. O Grande Lago seria tomado pela cor púrpura do sangue adversário. Os jovens – motivo de tão grande desavença –, por sua vez, permaneceram nas tribos, sob os cuidados das mulheres. Aflitos, lembravam do último e único encontro, às margens do Lago. Enquanto isso, o tabuleiro estava preparado para o embate. Apesar da distância, restou claro que ambas as tribos traziam no corpo as mesmas cores, apesar das insígnias típicas de cada um. Temia-se pela confusão que isso poderia gerar. Vai que um desgraçado, mais descuidado, desferisse seus golpes contra sua própria gente. Como resolver o impasse? Um guerreiro, por demais franzino, de canelas finas, não titubeou: por que não um jogo? “Jogo”? Como assim? Sim, um jogo entre duas equipes em campo neutro: ao vencedor, toda a terra fértil, do nascente ao poente, passando pelo que é hoje a Azenha. Quanto ao perdedor, restaria habitar as profundezas do Grande Lago. Feito o acordo, só faltava decidir as cores de cada equipe. Os charruas optaram pelo escarlate. Já os minuanos, mais sóbrios, tomaram para si a cor do céu, azul feito anil. Este último, acompanhado do preto que riscava o corpo dos guerreiros e do branco que estampava aqueles olhos atentos, formava uma espécie de arco-íris tricolor. A pelota surgiu não se sabe de onde. Era uma pequena esfera envolvida por couro e recheada de folhas de bananeira. As goleiras não passavam de armações de taquara. Tudo pronto para a partida. Mal soara o assobio vindo sabe-se lá de onde, a partida começou. Uma tragédia. Acertavam tudo, menos a bola. Vez que outra, era um uivo de dor aqui, um grito ali ou acolá. As pernas da indiarada mais pareciam um porongo, tal o inchaço. Gol que era bom, nada. A tal ponto do goleiro de um dos times se dar ao luxo de sentar sobre os próprios calcanhares e puxar o charuto que trazia consigo. Era mais fácil sair um enfartado dali do que a bola cruzar por entre as varas. Apesar do entusiasmo das duas torcidas e dos rituais xamânicos, o placar seguia inalterado. Zero a zero. O jogo seguia insosso. Aos poucos o sono ia tomando conta daqueles olhares antes atentos. Diante da ausência de um juiz que arbitrasse a partida, esta seguia feito pluma ao vento, sem direção, ao sabor dos alísios. Já exaustos, os desafiantes mal se agüentavam em pé. Não corriam, sequer andavam. Titubeavam, ziguezagueando feito ébrio saído de bar. Finalmente, alguém teve a feliz idéia de estipular um tempo para a partida. Tempo? As tribos pareciam desconhecer tal conceito. Ainda assim, com a anuência dos anciãos tanto de minuanos como de charruas, foi acordado que a peleia se estenderia até que o Grande Disco deitasse sua cabeça por detrás do vale. Contudo, apesar do esforço hercúleo daquela gente, o destino das tribos seguia indefinido. Decidiram deixar que os deuses lançassem a sorte de cada um. Como? No palito! Aquele que tirasse o maior pedaço, sua tribo se consagraria vencedora. À outra, restaria o ostracismo. Por fim, os minuanos levaram a melhor, cabendo-lhes os verdes campos junto à Azenha. Quanto aos charruas, sobrou-lhes as profundezas do Grande Lago. Naquele lugar brejeiro e pantanoso é que passariam a viver os infelizes, abandonados à própria sorte. Condoídos pelos dissabores da tribo inimiga, os minuanos decidiram por auxiliá-los na empreitada de aterrarem área tão imprópria. Foram dias, meses, anos de trabalho incansável. Como forma de gratidão, os charruas propuseram um acordo de paz permanente, selado pelo enlace matrimonial entre os jovens que, noutros tempos, haviam sido o motivo da discórdia. Assim, finalmente, parecia nascer um novo tempo para aquelas tribos, reais fundadoras da dupla grenal.

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