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sábado, 5 de novembro de 2011

A ponte

A PONTE
Gilvan Teixeira



            Enquanto andava, como que a esmo, lembrava daqueles tempos. O vai-e-vem frenético dos carros a riscarem a Flores da Cunha nem de perto lembrava o tempo em que era piá. O ronco barulhento dos caminhões e ônibus há muito suplantara a voz daquelas pessoas que iam e vinham de todos os lados. Anônimos, na maioria, sem vez e sem voz. Isso continuava, como quando era criança. A Câmara de Vereadores já não era a mesma, nem a Prefeitura, nem tampouco o Fórum. Os suntuosos prédios dos ditos Poderes constituídos pareciam debochar da atávica miséria de muitos. Seguiam, os esquecidos, perambulando. Sustentados por uma paralisante esperança que embota os sentidos. O caminhar manso daquele homem contrastava com o andar nervoso do relógio. Este perdera não apenas os ponteiros, mas o charmoso tic-tac que cadenciava os corações de antigamente. Hoje, tudo passara a ser digital. Virtualizou-se as relações, tornando-as mais descartáveis do que nunca. A tranqueira, todas aquelas máquinas a fazerem incisões no asfalto, o barulho impaciente das buzinas, a sirene das ambulâncias prenunciando a morte dos preteridos pelo “sistema”... Tudo parecia incomodá-lo. Talvez estivesse ficando velho. O que para alguns era o progresso, para ele era simplesmente vaidade desmedida. Aqueles operários a rasgarem as entranhas da terra. Era como se cada pedaço retirado fosse uma peça de seu próprio passado. Um tempo que se ia, feito os nacos de concreto jogados sobre aquelas caçambas. A cada passo que dava, fragmentos de tempos idos. Um mosaico imperfeito embalado por um misto de saudade e de tristeza. Mais do que simplesmente nostalgia. Era comiseração. Autocomiseração. Pena de si e dos outros. Dó da humanidade. Esta parecia definhar em meio ao próprio estrume. Ainda lembrava da velha ponte que, quando guri, atravessava sob a companhia do pai. Formava-se uma pequena fila. Um carro por vez. Lá embaixo, o Gravataí. Parecia maior. O Tonico alinhava o TL sobre aquele estreito corredor de madeira, cercado por uma estrutura de ferro. As tábuas pareciam soltas. O friozinho na barriga era inevitável, porém gostoso. Adorava aquilo. O que seriam das viagens da capital à Cachoeirinha sem a velha ponte? Ela se fora, da mesma forma que o pai. Enquanto andava, lembrava daqueles tempos.

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