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quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A ELEIÇÃO

A ELEIÇÃO
Prof. Gilvan

            A cada três anos era a mesma coisa. O discurso politicamente correto cedia lugar às palavras pouco amistosas. Professores viravam gladiadores da pior espécie. A mão que antes afagava, agora deixava às claras o dedo em riste. O braço amigo de outrora, duvidasse, agora riscava o vazio à procura do queixo desafeto. Ontem, amigos. Hoje, ferozes adversários. Não fosse a placa indicando tratar-se de uma escola, diriam ser uma arena. O palco da discórdia a opor, de um lado, chimangos e, de outro, maragatos. Oponentes pobres de ideologia e vazios de princípios. Em volta, assistindo a tudo, alguns olhinhos inocentes, outros nem tanto. Em comum, o sentimento de que algo estava errado. A cordialidade professoral – normalmente entre os próprios pares (haja visto o corporativismo, às vezes, doentio e retrógrado) –, antes reinante, era preterida em nome de uma opacidade relacional, um clima por demais pesado. Os alunos, impotentes, pareciam assistir a tudo, como sem acreditar. Embora tenros, desde muito cedo sabiam a diferença entre discurso e prática. Só esta última os convencia. No mais, eram só palavras vazias, destituídas de alma, ocas feito bambu. Alguns pequerruchos, mal tinham largado as fraldas, já se viam cercados de aliciadores, sequiosos por votos. Alunos que há pouco recebiam os safanões da Direção e de seus mestres, agora eram tratados a pão-de-ló. Antes, excluídos, mal-criados, delinqüentes, indisciplinados. Agora, miraculosamente, quase anjos. Não faz muito, eram apenas números. Repentinamente, passaram a ser chamados pelo nome e, inacreditavelmente, pelo sobrenome. O “terrível” da setenta e três virou Pedro Henrique. O “tinhoso” da cinqüenta e um passou a ser o Matias. Até linhagem receberam. O “impossível” da vinte e dois, de repente, virou o Lucas Alberto de Oliveira Prado, filho do Seu Carlos, o pedreiro do Beco Dezesseis. Os tempos, em período de eleição, de fato eram outros. Os semblantes, antes hermeticamente fechados, abriam-se. Sorrisos, abraços e apertos de mão eram largamente distribuídos, exceto para os adversários. A Sala dos Professores, antes uma babel de assuntos em meio ao comércio intenso de langery e compotas de pêssego, agora mais parecia velório. Um desconfiando do outro. A salvo, só o morto. A balbúrdia que antes ofendia aos ouvidos fora trocada pelo silêncio sepulcral. Olhares desconfiados varriam o lugar. Poucos se aventuravam a se manifestar. Vai que fossem mal compreendidos. Preferiam o silêncio, ao risco de serem acusados de traição. As poucas palavras que surgiam, mais pareciam sussurros. Até o bater das asas de uma varejeira se fazia ouvir por todos. Os poucos corajosos que compunham a Comissão mais pareciam pisar sobre ovos. Controlavam até a própria respiração. Qualquer deslize e pronto! Anos de trabalhos prestados eram esquecidos. De herói a vilão, num piscar de olhos. O que era para ser um momento sublime de discussão, estreitamento do diálogo, acolhida, reflexão, passava a ser motivo de afastamento, degeneração das relações e frouxidão da ética. O precioso tempo que deveria ser usado para impregnar o ambiente escolar de novas idéias e busca de soluções passava a ser um tempo subtraído da gurizada em desfavor da comunidade escolar. O que era para ser aprendizado e exercício da democracia passava a ser motivo de repúdio, asco e vergonha. Para quê democracia? Para quê liberdade? O recado que teimava em ficar para os pequenos era o de que a “gestão democrática” não passava de falácia. Respeito, alteridade, cumplicidade com a verdade, pareciam ser conceitos meramente livrescos. Perdia-se a oportunidade de fazer da escola um espaço de aprendizagem e de construção da cidadania. Os olhinhos, antes reluzentes feito estrelas, iam aos poucos perdendo o brilho. A esperança parecia querer escapar da caixa de Pandora, esvair-se em meio àquela que deveria ser o lúdico espaço da criação, da dúvida, da curiosidade e da construção da cidadania. 

Um comentário:

  1. Belo texto professor. Toca um ponto bem "instintivo" do ser humano, digamos assim. Podemos ver que esse "instinto" de competição que o homem teima em criar já se alastrou como um câncer. A cidadania está aos poucos sumindo, não respeitamos mais nada, e por que seriamos respeitados? A caixa está cada vez mais vazia, e o brilho parece nem existir mais. A democracia virou um campo de guerra, e nós somos a linha de frente, enquanto gente dita de maior poder, nos observa morrer pouco a pouco. A democracia só existe quando se respeita a escolha do próximo, e esta é debatida de forma equilibrada e humana. O que vemos hoje, tanto em eleições de escola quanto a de presidente, prefeito, não passam de meios de se obter poder para sair da linha de guerra, sem nenhum respeito à pessoa que foi ao seu favor. Enfim, ótimo texto sor. Parabéns.

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