A BRUXA
Gilvan Teixeira
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O inverno mal iniciara e o frio já era intenso. O
minuano diminuía ainda mais a sensação térmica naquela manhã. Cachoeirinha
estava envolta pelas brumas. Apesar do adiantado da hora – passava das seis –, ainda
era escuro. O rio, ou o que sobrara dele, exalava uma densa nuvem a esconder
tudo a sua volta. A artéria principal da cidade metropolitana mais parecia
aqueles fiozinhos tomados de pequenas lâmpadas, muito comuns em período natalino.
Verdadeiro pisca-pisca das lanternas traseiras dos automóveis, enfileirados
naquele lerdo movimento de arrancadas e freadas. No interior dos coletivos,
vultos. Anônimos, espremidos feito gado. Prontos para o abatedouro, para a
dureza da lida. Verdadeiras sardinhas em direção à enorme boca recheada de
dentes dos tubarões. Lado a lado, carros particulares, luxuosos alguns, e
ônibus lotados. Entre eles, em comum, os vidros embaçados pelo contato do ar
quente saído daqueles corpos com o gélido ar que brotava do polo meridional. O
barulho artificial saído dos motores afugentara, há muito, o canto do galo. Não
fosse o Mato do Julho e o “Bosque”, teriam desaparecido todos os vestígios do
tempo em que o lugar trazia os ares do interior. Lá, no Bosque, em meio à
paisagem bucólica, diziam os mais antigos, vivia a Bruxa. Não eram poucos os
que juravam, de pés juntos, tê-la visto. É bem verdade que as narrativas pouco
tinham em comum, salvo um ou outro detalhe. Alguns afirmavam tê-la visto
enfiada num longo vestido preto, coberto por uma capa escarlate. Outros,
contudo, eram menos caricaturais. Descreviam a mulher como um ser belo,
encantador, quase uma sereia a enfeitiçar os incautos. No lugar da vassoura, um
ramalhete de flores multicoloridas e perfumadas. Muitas eram as versões
envolvendo a origem, características e intenções da Bruxa do Bosque. A lenda
mais aceita era a de que ela teria vindo das bandas do Passo de Torres. Nascida
no interior, já teria muito cedo dado mostras de suas particularidades. Ainda
pequena – naquela época o cabelo cacheado já a diferenciava –, diziam, teria
demonstrado enorme interesse pelos segredos da floresta. Os sons, cheiros e
movimentos que para a maioria dos mortais eram motivo de medo avassalador, para
a menina soavam como inspiração. Era duvidar, lá estava ela a observar ervas
aromáticas e pássaros exóticos. Ao que tudo indica, era inquisidora, curiosa e
insistente. Enquanto a mãe não lhe explicasse a funcionalidade daqueles
vegetais, não sossegava. Esta serve para quê? Aquela, e aquela outra? Absorta,
prestava atenção a cada explicação. Os olhinhos brilhavam embalados pelas
histórias que se seguiam. O poder curativo da natureza despertava na guria um
misto de respeito e devoção. Passara a ver e se ver a partir do vento, da chuva
e do fogo. Para ela, nada era por acaso. O que de início era desconfiança, com
o tempo se tornou certeza. Segundo diziam muitos, a Bruxa nada tinha de má. Era
como que uma extensão da “Grande Mãe”, uma parte da natureza ainda não
coisificada pelos atropelos do mercado. Viam-na como manifestação positiva,
fonte de boas vibrações e sinônimo de um bem-vindo animismo. A ideia de uma
velha nariguda, verruguenta e sinistra passava de largo dos que viam a Bruxa
com simpatia. Afugentavam, ainda, a imagem associada ao enorme caldeirão, cheio
daquele líquido incandescente alimentado por insetos, anfíbios, répteis,
morcegos, mexas de cabelo e pós de origem duvidosa. Para os defensores da
Bruxa, ou de sua imagem, a pequena cidade perderia muito de seu romantismo, não
fosse as histórias contadas. Verdadeiras ou não. O que é a verdade, senão
aquilo em que se acredita? Valem pelo efeito que produzem. O cheiro do orvalho
a embeber a pequena cidade parecia convidar os transeuntes a sonhar, mesmo que
a contragosto acordados. Vez por outra, em meio ao clima leitoso do inverno, um
vulto. Duvidasse, era ela, a Bruxa, a espreitar grandes e pequenos, homens e
mulheres. Pura diversão, talvez. Serelepe e faceira. Como nos tempos de criança
lá para as bandas do Passo de Torres.
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