ENIGMA
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Eis que a primavera corria solta em direção ao
caloroso abraço do verão. Mal começara novembro e a sensação era de final de
ano. Natal, Réveillon, férias, praia... Por mais que resistisse, bem sabia que antes do
apagar das luzes de dois mil e doze, algumas pendências precisavam ser
resolvidas. Passar de ano era uma delas.
Sentia-se pressionado. Química, Física,
Matemática, Geografia... Provas e mais provas. Teria de enfrentar, ainda, ENEM,
simulados, vestibular aqui e acolá. Família, tios, primos, amigos e até o
cachorro, todos pareciam cobrá-lo. Tão cruel quanto à cobrança explícita, era
aquela outra, a que se dava nas entrelinhas. Indiretas, olhares de canto,
gestos suspeitos, sorrisos estreitos. Deboche ou exagero? A mais pura verdade
ou peraltices de uma mente com mania de perseguição? O fato é que sofria. Sim,
padecia por ele e pelos outros. Tinha clareza do quanto era sofrível para os
pais pagarem a mensalidade. Quase um carro por ano! Mesmo que usado, era um
valor e tanto. Pesava no orçamento e na consciência. Não pensassem fosse ele um
insensível alienado. Doía-lhe lembrar que o carnê da escola descansava com
tantos outros no fundo da gaveta, engrossando dívidas e endossando uma crise
conjugal que parecia não ter fim.
Tudo a sua volta parecia conspirar. O sono, há
algum tempo não o visitava e quando o fazia, era inoportuno. As noites eram
regadas a Coca-Cola e Trakinas. O latido dos cães ao longe misturava-se ao
tec-tec do teclado. Verdadeiro zumbi. Uma multidão deles. Velhos, jovens,
crianças... Homens, mulheres... Sarados, doentes... Comunicava-se com muitos,
tudo ao mesmo tempo. Era um “comunicar” inteligível, apesar de imperfeito.
Junto com a madrugada, avançavam também os ponteiros do velho relógio, herança da
avó, pendurado ao fundo do corredor. Duas horas da manhã e nada de conseguir
dormir. Logo viria o arrependimento, feito algoz, a cobrar cada minuto de sono
perdido.
Um, dois períodos... Era o tempo que levava
para, finalmente, se dar conta que a aula começara. Depois de recebida a falta
por não ter respondido a chamada e após meia dúzia de reclamações do professor,
aí sim o galo parecia cantar. Zoavam dele. Sua distração era motivo de chacota. Engraçado
para os colegas, irritante para os professores. Era tido por desleixado,
preguiçoso, “largado”... O caderno por si já denunciava a quanto ia a vida do
sujeito. Alguns rabiscos e nada mais. Temas incompletos, textos pela metade,
provas não assinadas... Tinha de tudo naquela bagunça. Outro dia, uma
professora jurara de pés juntos que vira uma traça a corroer, faceira, a capa
do caderno do aluno. Ia de mal a pior.
Dias intermináveis os que, de um tempo para cá,
vivia. Ganhara peso, assim como uma permanente tristeza. O olhar já há algum
tempo não apresentava aquele brilho de outrora. A mãe já observara! Falara dos
olhos caídos do guri (ora, já era quase um homem...). Drogas? Não. Paixão?
Muito menos. A simples hipótese de uma depressão, mesmo que leve, já mobilizara toda a família. Psicólogo,
terapia familiar, até terreiro de umbanda. Nada dele recobrar o antigo sorriso
e a tez do passado. Fora os gastos, nada mais. Sentia-se um verme, um nada!
Enquanto isso, o tempo seguia sem dar trégua.
As fatídicas datas das provas e entrega de trabalhos iam chegando, feito
turbilhão. Com a proximidade do término do ano letivo, ia diminuindo a margem
do jeitinho e da enganação. As manobras de antes já não encontravam eco. A hora
da verdade chegava a passos largos. Com ela, o medo da reprovação. A reprimenda
dos pais, as inevitáveis sanções, a crítica dos avós, a troca de escola, a
distância dos amigos... O mundo parecia ter sido injusto e cruel com ele. A
primavera, indiferente, seguia seu curso em direção à próxima estação!
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