SUPORTABILIDADE: PARA QUEM?
Prof. Gilvan Teixeira
blog:
profgilvanteixeira.blogspot.com.br
Os
tempos são outros. Não faz muito, pessoas com deficiência eram, muito
comumente, “invisíveis” à sociedade. Alijadas da escola, por exemplo, pouco
conheciam senão as paredes da própria casa, só não menores e mais
descoloridamente frias do que o acolhimento neste mundão de Deus. Verdadeiros
“bichinhos da goiaba”, a presença delas soava como inoportuna, incômoda numa
sociedade autointitulada de “normal”. Pareciam encarnar a triste história do Corcunda
de Notre Dame, porém muito mais cruel e sombria, dado que verdadeira.
Enclausurados ficavam não apenas os seus corpos – não raras vezes atrofiados
pela indiferença e ignorância alheias –, mas seus sonhos e potencialidades. Aos
poucos, contudo, tensionada pela incansável luta e teimosia de algumas pessoas
e entidades da sociedade civil organizada, a legislação passou a contemplar os
direitos desse público e importantes políticas públicas foram se estabelecendo.
A Constituição de 1988 não deixa dúvidas quanto ao tratamento a ser dado às
pessoas com deficiência:
Art. 3º Constituem objetivos
fundamentais
da República Federativa do Brasil:
[…]
IV - promover o bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
O
acolhimento às pessoas com deficiência é, portanto, basilar na própria
existência da República brasileira. A Carta traz, ainda:
Art. 5º Todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
Às
pessoas com deficiência foi garantida não apenas a igualdade – princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana –, mas proteção especial por parte do
Poder Público, conforme se lê:
Art. 23. É competência
comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
[…]
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia
das pessoas portadoras de deficiência;
No
que tange à educação, a garantia não destoa:
Art. 208. O dever
do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
[…]
III - atendimento
educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na
rede regular de ensino;
[…]
V - acesso aos
níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo
a capacidade de cada um;
[...]
A
legislação pátria é farta em preceitos garantidores e assecuratórios de
direitos educacionais atinentes às pessoas com deficiência. Exemplos disso são
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Federal nº 9.394/1996),
bem como os Estatutos da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069/1990) e
da Pessoa com Deficiência (Lei Federal nº 13.146/2015). Este último, diga-se de
passagem, já em seu primeiro Artigo, diz:
Art. 1º É instituída a Lei
Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com
Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade,
o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com
deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.
Lê-se,
ainda:
Art. 27. A educação constitui direito
da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em
todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o
máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas,
sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características,
interesses e necessidades de aprendizagem.
O
Estatuto acima (Lei nº 13.146/2015) não deixa dúvidas, primeiro, quanto ao
direito do educando com deficiência e, segundo, quanto à necessidade de um
olhar diferenciado em relação a ele. Na esfera do Município, vê-se a mesma
preocupação. O Plano Municipal de Educação, alterado pela Lei nº 4040/2015,
dentre suas “metas”, traz:
Meta 4: Universalizar,
para a população de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos com deficiência,
transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação,
o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado,
preferencialmente na rede regular de ensino, com a garantia de sistema
educacional inclusivo, de salas de recursos multifuncionais, classes, escolas
ou serviços especializados, públicos ou conveniados.
Estratégias:
[…]
Garantir
a oferta de educação inclusiva com qualidade, de acordo com a suportabilidade
de tempo de permanência no espaço em sala de aula, respeitando a
individualidade e necessidades de cada aluno.
[...]
Resta
claro, portanto, que a suportabilidade prevista acima é “do” e
“para” o educando, não para o professor, escola e/ou para família.
Assim, eventual redução no tempo de permanência do aluno com deficiência deve
estar amparada na necessidade e bem-estar do educando e não de
terceiros. Quaisquer outros argumentos (falta de recursos humanos, precariedade
física das instituições escolares, carência técnica dos profissionais no
ambiente escolar, etc.), provavelmente, restarão inconsistentes ante eventual
ação judicial movida em nome dos alunos com deficiência para que permaneçam na
escola durante todo o turno. O critério fundante para suportabilidade deve
ser técnico, respaldado, portanto, em avaliações oriundas de profissionais
devidamente habilitados. Não cabe à escola ser depósito de pessoas (quase
sempre crianças) com deficiência, a servir de “família substituta”, enquanto os
genitores dão conta de seus afazeres, por mais nobres que sejam. Tampouco, a
escola deve ser espaço de exclusão e insensibilidade. Sua função é, sobretudo,
pedagógica! Tem sim o condão de “cuidar”, este, contudo, subsidiário da função
precípua da escola, a de “educar”.
A
decisão pela redução no tempo de permanência na escola do aluno com deficiência
(suportabilidade) está para o profissional do SAEE (Serviço de Atendimento
Educacional Especializado) assim como o receituário está para o médico. A
competência para decidir por tal redução é do profissional especializado
(salvo se, de forma fundamentada, for atacada por outra decisão de melhor ou
maior valor), não da família, do conselheiro tutelar ou de pessoas “estranhas”
à escola. As decisões e encaminhamentos desta última precisam ser respeitadas e
socialmente reconhecidas, desde que pedagógica e legalmente justas.
Vale
lembrar que a própria legislação reconhece os limites do “possível” e do
“razoável” no que tange ao atendimento à pessoa com deficiência. Um é o mundo
“real” e outro o “ideal”. O Estatuto da Pessoa com Deficiência, por
exemplo, em seu Art. 3º, VI, ao tratar das “adaptações razoáveis”, conceitua:
Art. 3º Para
fins de aplicação desta Lei, consideram-se:
[...]
VI - adaptações razoáveis:
adaptações, modificações e ajustes necessários e adequados que não acarretem
ônus desproporcional e indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de
assegurar que a pessoa com deficiência possa gozar ou exercer, em igualdade de
condições e oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos e liberdades
fundamentais.
Infelizmente,
em que pese as boas intenções, tem sido comum e crescente um processo de
“desautorização” e enfraquecimento da autoridade (aqui entendida sob o aspecto
técnico) da escola e de seus agentes. Não que suas decisões estejam a salvo de
críticas e contestações, mas que se preserve a premissa de que ninguém
melhor do que os profissionais da educação (professores, especialistas, etc.)
para dela tratar e sobre ela opinar.