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segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

BANHO TCHECO


BANHO TCHECO
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br

               

                “Esta noite não vai ter”. Tamanha ameaça vinda da companheira só fazia aumentar a ira e indignação do desgraçado. Um dia inteiro sem água e, como sempre acontece, a corda arrebenta do lado mais fraco. Ora, que se penalizasse a companhia de abastecimento de água, seus diretores e funcionários ou, ainda, quem sabe, as imprestáveis agências reguladoras que nada mais servem do que meros cabides de emprego e trampolins político-partidários. Por que sobrar para ele? A mensagem da esposa era direta e objetiva – ao contrário da embromação por detrás da linha telefônica do maldito zero oitocentos –, não deixava margem para dúvidas: banho tcheco ou passaria a noite em seco. Até tentara convencê-la do poder miraculoso do Rexona, ainda mais se emplastado em várias camadas embaixo dos sovacos. Irredutível, a mulher nem lhe olhava, ignorando-o por completo. Até a água gelada da piscina de plástico enfiada nos fundos da residência parecia uma saída honrosa para o imbróglio alimentado pela resoluta insistência feminina. Contudo, como explicar aos filhos o banho àquela hora da noite? Fosse criança, tudo bem, mas logo ele, burro velho, enfiado na piscina em meio à madrugada, viraria motivo de gracinhas por parte da vizinhança. Portanto, fora de cogitação. A raiva aumentava à medida que os ponteiros do relógio avançavam sem que a esperada água aparecesse. Perdera as contas quantas vezes abriu a torneira da área de serviço em busca da perfeita mistura dos dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. O desespero era tamanho que bastava meio átomo de cada elemento. Contudo, nem água e nem vento saía da bica. O pavor era tal que até abriu mão da rotineira escovação dos filhos, além é claro de clamar aos céus que os pequerruchos não inventassem de cagar naquela altura do campeonato. A ordem era clara: poupar cada gota de água que fosse possível. Verdadeiro estado de guerra. Sem banho, pouca ração e sem televisão. Sim, afinal temia que as mensagens subliminares da programação pudessem desencadear uma vontade incontrolável da piazada em consumir água. Menos a caçula, esta movida a refrigerante e picolé. Quem diria, enquanto noutros tempos sentia certa inveja do carro ou da casa nova do vizinho, agora mirava o poço artesiano do felizardo. O ronco do motor a puxar água lá de baixo fazia lembrar o monstro da motosserra estraçalhando seu orgulho. Não bastasse, não é que o malvado, muito provavelmente, de forma proposital, deixava a água sair pelo ladrão, como que a zombar da sina alheia? A tardança da água era caso de polícia, um atentado ao contribuinte e uma ameaça à estabilidade familiar. A mulher, que de tcheca nada tinha, não cansava de ostentar que com dois copos e meio de água não só tomara banho, como lavara a cabeça. Impossível, pensava o pobre marido. Dois copos mal davam para lavar os olhos, quanto mais um corpito como o dele, para lá dos noventa quilos. Percebendo a falta de flexibilidade da esposa, partira para negociação. Quem sabe um aconchego aqui, uma carícia acolá... Banho tcheco ou nada! Apelara para filosofia, história, sociologia, bruxaria... Não! Bolas, até os Estados Unidos relaxaram o embargo econômico à Cuba, por que então tamanha incompreensão? “No, no, no estoy convencida” bradava ela num espanhol impulsionado por uma brabeza russa. Algo de assustar. Resignado, o coitado, de posse da canequinha, dirigiu-se ao banheiro. Até que sorteasse as partes a serem limpas e transformasse toda aquela pedra em pão, eis que a mulher entregara-se aos braços de Morfeu.


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