BANHO TCHECO
Gilvan Teixeira
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“Esta noite não vai ter”. Tamanha ameaça vinda da
companheira só fazia aumentar a ira e indignação do desgraçado. Um dia inteiro
sem água e, como sempre acontece, a corda arrebenta do lado mais fraco. Ora,
que se penalizasse a companhia de abastecimento de água, seus diretores e funcionários
ou, ainda, quem sabe, as imprestáveis agências reguladoras que nada mais servem
do que meros cabides de emprego e trampolins político-partidários. Por que sobrar
para ele? A mensagem da esposa era direta e objetiva – ao contrário da
embromação por detrás da linha telefônica do maldito zero oitocentos –, não
deixava margem para dúvidas: banho tcheco ou passaria a noite em seco. Até tentara
convencê-la do poder miraculoso do Rexona,
ainda mais se emplastado em várias camadas embaixo dos sovacos. Irredutível, a
mulher nem lhe olhava, ignorando-o por completo. Até a água gelada da piscina
de plástico enfiada nos fundos da residência parecia uma saída honrosa para o
imbróglio alimentado pela resoluta insistência feminina. Contudo, como explicar
aos filhos o banho àquela hora da noite? Fosse criança, tudo bem, mas logo ele,
burro velho, enfiado na piscina em meio à madrugada, viraria motivo de
gracinhas por parte da vizinhança. Portanto, fora de cogitação. A raiva
aumentava à medida que os ponteiros do relógio avançavam sem que a esperada
água aparecesse. Perdera as contas quantas vezes abriu a torneira da área de
serviço em busca da perfeita mistura dos dois átomos de hidrogênio e um de
oxigênio. O desespero era tamanho que bastava meio átomo de cada elemento.
Contudo, nem água e nem vento saía da bica. O pavor era tal que até abriu mão
da rotineira escovação dos filhos, além é claro de clamar aos céus que os
pequerruchos não inventassem de cagar naquela altura do campeonato. A ordem era
clara: poupar cada gota de água que fosse possível. Verdadeiro estado de
guerra. Sem banho, pouca ração e sem televisão. Sim, afinal temia que as
mensagens subliminares da programação pudessem desencadear uma vontade
incontrolável da piazada em consumir água. Menos a caçula, esta movida a
refrigerante e picolé. Quem diria, enquanto noutros tempos sentia certa inveja
do carro ou da casa nova do vizinho, agora mirava o poço artesiano do
felizardo. O ronco do motor a puxar água lá de baixo fazia lembrar o monstro da
motosserra estraçalhando seu orgulho. Não bastasse, não é que o malvado, muito
provavelmente, de forma proposital, deixava a água sair pelo ladrão, como que a
zombar da sina alheia? A tardança da água era caso de polícia, um atentado ao
contribuinte e uma ameaça à estabilidade familiar. A mulher, que de tcheca nada
tinha, não cansava de ostentar que com dois copos e meio de água não só tomara
banho, como lavara a cabeça. Impossível, pensava o pobre marido. Dois copos mal
davam para lavar os olhos, quanto mais um corpito como o dele, para lá dos
noventa quilos. Percebendo a falta de flexibilidade da esposa, partira para
negociação. Quem sabe um aconchego aqui, uma carícia acolá... Banho tcheco ou
nada! Apelara para filosofia, história, sociologia, bruxaria... Não! Bolas, até
os Estados Unidos relaxaram o embargo econômico à Cuba, por que então tamanha
incompreensão? “No, no, no estoy
convencida” bradava ela num espanhol impulsionado por uma brabeza russa. Algo
de assustar. Resignado, o coitado, de posse da canequinha, dirigiu-se ao
banheiro. Até que sorteasse as partes a serem limpas e transformasse toda
aquela pedra em pão, eis que a mulher entregara-se aos braços de Morfeu.
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