BOA-FÉ
Gilvan Teixeira
e-mail: profpreto@gmail.com
blog:
profgilvanteixeira.blogspot.com.br
Há muito venho sendo desprezada. Noutros tempos, era
eu chegar e pronto! Sem cartão de visita, sem procuração, sem escritura pública
ou coisa que o valha. Quase todos me conheciam, exceto os recém-saídos das
entranhas de mulher. Minha palavra era tida por sacra, sem qualquer margem para
dúvida ou desconfiança. Sentava-me à mesa com generais e praças, senhores e
servos, ricos e miseráveis, ximangos e maragatos, monarquistas e republicanos,
doutores e iletrados. Sobre a varanda, no interior da sala-de-estar ou no mais
íntimo da alcova, eu era respeitada. No Parlamento, no gabinete, no escritório,
na sala de aula era tratada como dama, querida e sempre bem-vinda. No Fórum,
aos papéis era reservado lugar secundário, pois que a mim cabia ocupar o
pedestal. No recôndito do lar, nada era decidido sem minha presença. Era
onipresente, ao contrário de hoje... Ah, hoje... Agora sou uma “quase-nada”.
Preterida pela formalidade do papel ou pela assinatura digital, tenho sido
relegada. Zombam de mim, hora tida por ingênua, hora por tola. Feito
alienígena, pareço de outro planeta. Sinto-me abandonada. Afastaram-me das
audiências e passo de largo até mesmo das mais pueris reuniões de família.
Juízes, delegados, prefeitos, professores, padres, pastores, empresários,
operários, mendigos, presidiários... Todos me traem e espezinham. Virei letra
morta de livros antigos, de folhas amareladas e carcomidas pela traça. Crianças,
nem elas me respeitam. Pudera, como poderiam? Sequer me conhecem! Os pais, meus
antigos guardiões, ocultam minha identidade e escondem meu passado. É como se
jamais tivesse existido, menos ainda reinado. Salvo um ou
outro – por vezes, ironicamente,
taxado de louco –, todos dão de ombros
quando passo. Ignoram-me. Nada valho. Lançaram-me na vala comum das expressões
vazias: amor, fidelidade, honestidade, ética... Fui superada, dilacerada pelo
relativismo exacerbado e perverso dos mortais. Lembram de mim, como de uma
concubina qualquer. Sem compromisso! Só me possuem quando convém. Na
academia, mesmo entre os bacharéis e futuros operadores do Direito, sou não
mais do que um verbete, às vezes em latim, às vezes no vernáculo. Num e noutro,
apenas mais uma entre muitas palavras desconhecidas de fato. O trono outrora
por mim ocupado, hoje é tomado pela desfaçatez, engodo e perfídia. Foi-se o
tempo em que nas ruelas e praças sacavam o chapéu para as senhoritas e mulheres
casadas, tempo em que os cavalheiros curvavam-se em sinal de respeito e
deferência, tempo em que eu frequentava desde os palacetes aos mais humildes
mocambos. Hoje, os tempos são outros. Multiplicaram-se as avenidas e
arranha-céus na mesma velocidade dos punguistas. As silhuetas esguias deram
lugar aos corpos obesos e lerdos, enquanto o vocabulário rebuscado cedeu lugar
a um punhado de monossílabos. As longas caminhadas entre os quarteirões não
passam de lembranças. As cadeiras giratórias da pós-modernidade embalam
traseiros enormes e embotam os mais elementares valores da vida. Enquanto isso,
sigo lançada a um canto sob a forma de mídia, quando não trancafiada num
arquivo-morto. Sobra farelo de bolacha e manchas de Coca-Cola em torno da mesa,
falta conhecimento a meu respeito. Poucos me desposam. Chamo-me boa-fé.
Veja também:
http://www.institutosaofrancisco.com.br/site/artigos_visualizar.php?artigo_autenticacao_=1bbe98757fc14ac43c4ace4ddad277f5
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Incrível. Só resta agradecer ao Gilvan. Gracias, meu amigo!
ResponderExcluirO pouco que sei aprendi com pessoas especiais. És uma delas! Abração.
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