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quarta-feira, 8 de maio de 2013

BOA-FÉ



BOA-FÉ
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br



                Há muito venho sendo desprezada. Noutros tempos, era eu chegar e pronto! Sem cartão de visita, sem procuração, sem escritura pública ou coisa que o valha. Quase todos me conheciam, exceto os recém-saídos das entranhas de mulher. Minha palavra era tida por sacra, sem qualquer margem para dúvida ou desconfiança. Sentava-me à mesa com generais e praças, senhores e servos, ricos e miseráveis, ximangos e maragatos, monarquistas e republicanos, doutores e iletrados. Sobre a varanda, no interior da sala-de-estar ou no mais íntimo da alcova, eu era respeitada. No Parlamento, no gabinete, no escritório, na sala de aula era tratada como dama, querida e sempre bem-vinda. No Fórum, aos papéis era reservado lugar secundário, pois que a mim cabia ocupar o pedestal. No recôndito do lar, nada era decidido sem minha presença. Era onipresente, ao contrário de hoje... Ah, hoje... Agora sou uma “quase-nada”. Preterida pela formalidade do papel ou pela assinatura digital, tenho sido relegada. Zombam de mim, hora tida por ingênua, hora por tola. Feito alienígena, pareço de outro planeta. Sinto-me abandonada. Afastaram-me das audiências e passo de largo até mesmo das mais pueris reuniões de família. Juízes, delegados, prefeitos, professores, padres, pastores, empresários, operários, mendigos, presidiários... Todos me traem e espezinham. Virei letra morta de livros antigos, de folhas amareladas e carcomidas pela traça. Crianças, nem elas me respeitam. Pudera, como poderiam? Sequer me conhecem! Os pais, meus antigos guardiões, ocultam minha identidade e escondem meu passado. É como se jamais tivesse existido, menos ainda reinado. Salvo um  ou  outro  – por vezes, ironicamente, taxado de louco –, todos  dão de ombros quando passo. Ignoram-me. Nada valho. Lançaram-me na vala comum das expressões vazias: amor, fidelidade, honestidade, ética... Fui superada, dilacerada pelo relativismo exacerbado e perverso dos mortais. Lembram de mim, como de uma concubina qualquer. Sem compromisso! Só me possuem quando convém. Na academia, mesmo entre os bacharéis e futuros operadores do Direito, sou não mais do que um verbete, às vezes em latim, às vezes no vernáculo. Num e noutro, apenas mais uma entre muitas palavras desconhecidas de fato. O trono outrora por mim ocupado, hoje é tomado pela desfaçatez, engodo e perfídia. Foi-se o tempo em que nas ruelas e praças sacavam o chapéu para as senhoritas e mulheres casadas, tempo em que os cavalheiros curvavam-se em sinal de respeito e deferência, tempo em que eu frequentava desde os palacetes aos mais humildes mocambos. Hoje, os tempos são outros. Multiplicaram-se as avenidas e arranha-céus na mesma velocidade dos punguistas. As silhuetas esguias deram lugar aos corpos obesos e lerdos, enquanto o vocabulário rebuscado cedeu lugar a um punhado de monossílabos. As longas caminhadas entre os quarteirões não passam de lembranças. As cadeiras giratórias da pós-modernidade embalam traseiros enormes e embotam os mais elementares valores da vida. Enquanto isso, sigo lançada a um canto sob a forma de mídia, quando não trancafiada num arquivo-morto. Sobra farelo de bolacha e manchas de Coca-Cola em torno da mesa, falta conhecimento a meu respeito. Poucos me desposam. Chamo-me boa-fé. 

Veja também:
http://www.institutosaofrancisco.com.br/site/artigos_visualizar.php?artigo_autenticacao_=1bbe98757fc14ac43c4ace4ddad277f5

2 comentários:

  1. Incrível. Só resta agradecer ao Gilvan. Gracias, meu amigo!

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  2. O pouco que sei aprendi com pessoas especiais. És uma delas! Abração.

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