ENTREVISTA COM BAUMAN
Revista IstoÉ, setembro de 2010
Zygmunt
Bauman
"Vivemos tempos líquidos. Nada é para
durar"
Sociólogo polonês cria tese para
justificar atual paranoia contra a violência e a instabilidade dos
relacionamentos amorosos
Adriana
Prado
O
sociólogo polonês radicado na Inglaterra Zygmunt Bauman é um dos intelectuais
mais respeitados e produtivos da atualidade. Aos 84 anos, escreveu mais de 50
livros. Dois dos mais recentes, “Vida a crédito” e “Capitalismo Parasitário”
chegam ao Brasil pela Zahar. As quase duas dezenas de títulos já publicados no
País pela editora venderam mais de 200 mil cópias. Um resultado e tanto para um
teórico. Pode-se explicar o apelo de sua obra pela relativa simplicidade com
que esmiúça aspectos diversos da “modernidade líquida”, seu conceito
fundamental. É assim que ele se refere ao momento da História em que vivemos.
Os tempos são “líquidos” porque tudo muda tão rapidamente. Nada é feito para
durar, para ser “sólido”. Disso resultariam, entre outras questões, a obsessão
pelo corpo ideal, o culto às celebridades, o endividamento geral, a paranóia
com segurança e até a instabilidade dos relacionamentos amorosos. É um mundo de
incertezas. E cada um por si. “Nossos ancestrais eram esperançosos: quando
falavam de ‘progresso’, se referiam à perspectiva de cada dia ser melhor do que
o anterior. Nós estamos assustados: ‘progresso’, para nós, significa uma
constante ameaça de ser chutado para fora de um carro em aceleração”, afirma.
Em entrevista à ISTOÉ, por e-mail, o professor emérito das universidades de
Leeds, no Reino Unido, e de Varsóvia, na Polônia, falou também sobre temas que
começou a estudar recentemente, mas são muito caros aos brasileiros: tráfico de
drogas, favelas e violência policial.
ISTOÉ -
O que caracteriza a “modernidade
líquida”?
ZYGMUNT BAUMAN -
Líquidos mudam de forma muito
rapidamente, sob a menor pressão. Na verdade, são incapazes de manter a mesma
forma por muito tempo. No atual estágio “líquido” da modernidade, os líquidos
são deliberadamente impedidos de se solidificarem. A temperatura elevada — ou
seja, o impulso de transgredir, de substituir, de acelerar a circulação de
mercadorias rentáveis — não dá ao fluxo uma oportunidade de abrandar, nem o
tempo necessário para condensar e solidificar-se em formas estáveis, com uma
maior expectativa de vida.
ISTOÉ -
As pessoas estão conscientes
dessa situação?
ZYGMUNT BAUMAN -
Acredito que todos estamos
cientes disso, num grau ou outro. Pelo menos às vezes, quando uma catástrofe,
natural ou provocada pelo homem, torna impossível ignorar as falhas. Portanto,
não é uma questão de “abrir os olhos”. O verdadeiro problema é: quem é capaz de
fazer o que deve ser feito para evitar o desastre que já podemos prever? O
problema não é a nossa falta de conhecimento, mas a falta de um agente capaz de
fazer o que o conhecimento nos diz ser necessário fazer, e urgentemente. Por
exemplo: estamos todos conscientes das consequências apocalípticas do
aquecimento do planeta. E todos estamos conscientes de que os recursos
planetários serão incapazes de sustentar a nossa filosofia e prática de
“crescimento econômico infinito” e de crescimento infinito do consumo. Sabemos
que esses recursos estão rapidamente se aproximando de seu esgotamento. Estamos
conscientes — mas e daí? Há poucos (ou nenhum) sinais de que, de própria
vontade, estamos caminhando para mudar as formas de vida que estão na origem de
todos esses problemas.
ISTOÉ -
A atual crise financeira tem
potencial para mudar a forma como vivemos?
ZYGMUNT BAUMAN -
Pode ter ou não. Primeiramente, a
crise está longe de terminar. Ainda veremos suas consequências de longo prazo
(um grande desemprego, entre outras). Em segundo lugar, as reações à crise não
foram até agora animadoras. A resposta quase unânime dos governos foi de
recapitalizar os bancos, para voltar ao “normal”. Mas foi precisamente esse
“normal” o responsável pela atual crise. Essa reação significa armazenar
problemas para o futuro. Mas a crise pode nos obrigar a mudar a maneira como
vivemos. A recapitalização dos bancos e instituições de crédito resultou em
dívidas públicas altíssimas, que precisão ser pagas pelos nossos filhos e netos
— e isso pode empobrecer as próximas gerações. As dívidas exorbitantes podem
levar a uma considerável redistribuição da riqueza. São os países ricos agora
os mais endividados. De qualquer forma, não são as crises que mudam o mundo, e
sim nossa reação a elas.
ISTOÉ -
Ao se conectarem ao mundo pela
internet, as pessoas estariam se desconectando da sua própria realidade?
ZYGMUNT BAUMAN -
Os contatos online têm uma
vantagem sobre os offline: são mais fáceis e menos arriscados — o que muita
gente acha atraente. Eles tornam mais fácil se conectar e se desconectar. Casos
as coisas fiquem “quentes” demais para o conforto, você pode simplesmente
desligar, sem necessidade de explicações complexas, sem inventar desculpas, sem
censuras ou culpa. Atrás do seu laptop ou iPhone, com fones no ouvido, você
pode se cortar fora dos desconfortos do mundo offline. Mas não há almoços
grátis, como diz um provérbio inglês: se você ganha algo, perde alguma coisa.
Entre as coisas perdidas estão as habilidades necessárias para estabelecer
relações de confiança, as para o que der vier, na saúde ou na tristeza, com
outras pessoas. Relações cujos encantos você nunca conhecerá a menos que
pratique. O problema é que, quanto mais você busca fugir dos inconvenientes da
vida offline, maior será a tendência a se desconectar.
ISTOÉ -
E o que o senhor chama de “amor
líquido”?
ZYGMUNT BAUMAN -
Amor líquido é um amor “até
segundo aviso”, o amor a partir do padrão dos bens de consumo: mantenha-os
enquanto eles te trouxerem satisfação e os substitua por outros que prometem
ainda mais satisfação. O amor com um espectro de eliminação imediata e, assim,
também de ansiedade permanente, pairando acima dele. Na sua forma “líquida”, o
amor tenta substituir a qualidade por quantidade — mas isso nunca pode ser
feito, como seus praticantes mais cedo ou mais tarde acabam percebendo. É bom
lembrar que o amor não é um “objeto encontrado”, mas um produto de um longo e
muitas vezes difícil esforço e de boa vontade.
ISTOÉ -
Nesse contexto, ainda faz sentido
sonhar com um relacionamento estável e duradouro?
ZYGMUNT BAUMAN -
Ambos os tipos de relacionamento
têm suas próprias vantagens e riscos. Em um mundo “líquido”, em rápida mutação,
“compromissos para a vida” podem se revelar como sendo promessas que não podem
ser cumpridas — deixando de serem algo valioso para virarem dificuldades. O
legado do passado, afinal, é a restrição mais grave que a vida pode impor à
liberdade de escolha. Mas, por outro lado, como se pode lutar contra as
adversidades do destino sozinho, sem a ajuda de amigos fiéis e dedicados, sem
um companheiro de vida, pronto para compartilhar os altos e baixos? Nenhuma das
duas variedades de relação é infalível. Mas a vida também não o é. Além disso,
o valor de um relacionamento é medido não só pelo que ele oferece a você, mas
também pelo que oferece aos seus parceiros. O melhor relacionamento imaginável
é aquele em que ambos os parceiros praticam essa verdade.
ISTOÉ -
O que explicaria o crescimento do
consumo de antidepressivos?
ZYGMUNT BAUMAN -
Você colocou o dedo em um dos
muitos sintomas da nossa crescente intolerância ao sofrimento – na verdade, uma
intolerância a cada desconforto ou mesmo ligeira inconveniência. Em uma vida
regulada por mercados consumidores, as pessoas passaram a acreditar que, para
cada problema, há uma solução. E que esta solução pode ser comprada na loja.
Que a tarefa do doente não é tanto usar sua habilidade para superar a
dificuldade, mas para encontrar a loja certa que venda o produto certo que irá
superar a dificuldade em seu lugar. Não foi provado que essa nova atitude
diminui nossas dores. Mas foi provado, além de qualquer dúvida razoável, que a
nossa induzida intolerância à dor é uma fonte inesgotável de lucros comerciais.
Por essa razão, podemos esperar que essa nossa intolerância se agrave ainda
mais, em vez de ser atenuada.
ISTOÉ -
E a obsessão pelo corpo perfeito?
ZYGMUNT BAUMAN -
Não é o ideal de perfeição que
lubrifica as engrenagens da indústria de cosméticos, mas o desejo de melhorar.
E isso significa seguir a moda atual. Todos os aspectos da aparência corporal
são, atualmente, objetos da moda, não apenas o cabelo ou a cor dos lábios, mas
os tamanhos dos quadris ou dos seios. A “perfeição” significaria um fim a
outras “melhorias”. Na cirurgia plástica, são oferecidos aos clientes cartões
de “fidelidade”, garantindo um desconto nas sucessivas cirurgias que eles
certamente irão realizar. Assim como a indústria de celebridades, a indústria
cosmética não tem limites e a demanda por seus serviços pode, a princípio, se
expandir infinitamente.
ISTOÉ -
O que está por trás desse culto
às celebridades?
ZYGMUNT BAUMAN -
Não é só uma questão de
candidatos a celebridades e seu desejo por notoriedade. O que também é uma
questão é que o “grande público” precisa de celebridades, de pessoas que
estejam no centro das atenções. Pessoas que, na ausência de autoridades
confiáveis, líderes, guias, professores, se oferecem como exemplos. Diante do
enfraquecimento das comunidades, essas pessoas fornecem “assuntos-chave” em
torno dos quais as quase-comunidades, mesmo que apenas por um breve momento, se
condensam —para desmoronar logo depois e se recondensar em torno de outras
celebridades momentâneas. É por isso que a indústria de celebridades está
garantida contra todas as depressões econômicas.
ISTOÉ -
Como fica o futuro nesse contexto
de constantes mudanças?
ZYGMUNT BAUMAN -
Nossos ancestrais eram esperançosos:
quando falavam de "progresso", se referiam à perspectiva de cada dia
ser melhor do que o anterior. Nós estamos assustados: “progresso”, para nós,
significa uma constante ameaça de ser chutado para fora de um carro em
aceleração. De não descer ou embarcar a tempo. De não estar atualizado com a
nova moda. De não abandonar rapidamente o suficiente habilidades e hábitos
ultrapassados e de falhar ao desenvolver as novas habilidades e hábitos que os
substituem. Além disso, ocupamos um mundo pautado pelo “agora”, que promete
satisfações imediatas e ridiculariza todos os atrasos e esforços a longo prazo.
Em um mundo composto de “agoras”, de momentos e episódios breves, não há espaço
para a preocupação com “futuro”. Como diz um outro provérbio inglês: “Vamos
cruzar essa ponte quando chegarmos a ela”. Mas quem pode dizer quando (e se)
chegar e em que ponte?
ISTOÉ -
Há cinco anos, a polícia de
Londres matou o brasileiro Jean Charles de Menezes, alegando tê-lo confundido
com um terrorista. Por que o mundo está tão paranoico com segurança?
ZYGMUNT BAUMAN -
Essa obsessão e a nossa gestão
dos assuntos globais, responsável por reforçá-la, constituem a ameaça mais
terrível à nossa segurança. O fantástico crescimento das “indústrias de
segurança”, juntamente com a crescente suspeita de perigo que ela evoca, são
motivos para antever uma piora das coisas. Se não por qualquer outro motivo,
então porque, na lógica das armas de fogo, uma vez carregadas, em algum elas
deverão ser descarregadas.
ISTOÉ -
No Brasil, a violência é uma
questão especialmente preocupante. Como o sr. enxerga isso?
ZYGMUNT BAUMAN -
Para começar, as favelas servem
como uma lixeira para um número enorme de pessoas tornadas desnecessárias em
partes do País onde suas fontes tradicionais de sustento foram destruídas —
para quem o Estado não tinha nada a oferecer nem um plano de futuro. Mesmo que
não declararem isso abertamente, as agências estatais devem estar felizes pelo
fato de o povo nas favelas tomar os problemas em suas próprias mãos. Por exemplo,
ao construir seus barracos rapidamente e de qualquer forma, usando materiais
instáveis, encontrados ou roubados, na ausência de habitações planejadas e
construídas pelas autoridades estaduais ou municipais para acomodá-los.
ISTOÉ -
Essa ausência do Estado abriu
espaço para os traficantes. O combate às quadrilhas às vezes é usado com
justificativa para excessos da polícia. Por que tanta violência?
ZYGMUNT BAUMAN -
As relações entre a polícia e as
empresas de tráfico de drogas são, na apropriada expressão de Bernardo Sorj
(sociólogo brasileiro, professor da Universidade Federal do Rio), “nem de
guerra nem de paz”. Esse amor e ódio entre as duas principais agências de
terror aumenta o estigma da favela como o local da violência genocida. Ao mesmo
tempo, porém, também contribui para a “funcionalidade” das favelas na
manutenção do atual sistema de poder no Brasil. A polícia brasileira tem um
longo histórico de tratamento brutal aos pobres, anterior à proliferação
relativamente recente das favelas. A brutalidade da polícia é mesmo para ser
espetacular. Como não é particularmente bem sucedida no combate à criminalidade
e à corrupção, a polícia, para convencer a população de seu potencial
coercitivo, deve assustá-la e coagi-la a ser passivamente obediente.
ISTOÉ -
O sr. vê uma solução?
ZYGMUNT BAUMAN -
Algo está sendo feito, mesmo que,
até agora, não seja suficiente para cortar um nó firmemente amarrado por
décadas, senão séculos. Um exemplo é o Viva Rio (ONG que atua contra a
violência). Pequenos passos, talvez, sopros não fortes o suficiente para romper
a armadura do ressentimento mútuo e indiferença moral de anos entre “morro” e
“asfalto” no Rio. Mas a escolha é, afinal, entre erguer paredes de pedra e aço
ou o desmantelamento de cercas espirituais.
ISTOÉ -
O que o sr. diria ao jovens?
ZYGMUNT BAUMAN -
Eu desejo que os jovens percebam
razoavelmente cedo que há tanto significado na vida quando eles conseguem
adicionar isso a ela através de esforço e dedicação. Que a árdua tarefa de
compor uma vida não pode ser reduzida a adicionar episódios agradáveis. A vida
é maior que a soma de seus momentos.