A CARA DO MORTO
Gilvan Teixeira
e-mail: profpreto@gmail.com
blog:
profgilvanteixeira.blogspot.com.br
Mais um Conselho de Classe. Vira e mexe, é quase
sempre a mesma história. Discute-se a “cara” do morto e não sua causa mortis. Desloca-se o foco da
discussão para o vértice do iceberg (a
ínfima pontinha que emerge do oceano) e não para o imenso e complexo bloco
escondido sob as águas geladas e profundas. Por quê? Talvez por ser mais fácil
e menos incômoda a observação. Qual é o sentido de discutir aquilo que é óbvio?
Ora, que o morto está ali, estirado sobre o ataúde, todos sabem. Vã é a
tentativa de melhorar a cara do finado. Apor um asterisco aqui ou acolá,
objetivando diminuir o número de reprovados em favor dos “evadidos”, é como passar
blush no “presunto”, não resolve o
problema e pouco serve para mascará-lo. O corpo segue gelado, o cheiro típico
permanece e, para piorar, aquelas mosquinhas insistentes fazem lembrar
tratar-se de um velório. Por que o aluno reprovou ou, usando um (mais um!)
eufemismo, “permaneceu”? Por que desistiu e quem o fez? Terá sido o aluno a
abandonar a Escola ou esta (nós!) o largou de mão? Quem sabe, ambos? Quais as
razões para tamanha fuga? Urge deixarmos de lado o amadorismo e a
superficialidade. O esforço hercúleo e louvável de sair em busca de
adolescentes e adultos para ocuparem as classes na EJA será em vão, caso não
consigamos estancar a hemorragia discente. Qual é o caminho? Acredito inexistir
um, já dado e pronto. Precisamos, coletivamente, buscar uma ou mais saídas para
o problema. Ela(s) passa(m), obrigatória e necessariamente, primeiro, pelo “querer”
de cada profissional, pela disposição individual em pesquisar, repensar, planejar
e trabalhar com vistas ao interesse coletivo. Este último, diga-se de passagem,
extrapola qualquer espécie de corporativismo funcional doentio e, a priori, deve estar consubstanciado na
Proposta Político-Pedagógica, bem como no Regimento Escolar. Todos, em especial
os educadores, devem conhecer os documentos norteadores da Instituição. Como é
a comunidade no entorno da Escola? Qual o perfil “médio” do público que busca
matrícula na EJA? Qual é a “cara” que desejamos dar à EJA? Qual a formação
mínima que o educando deve ter ao finalizar o curso? O que defendemos enquanto
princípios de convivência? Enfim, inúmeras são as perguntas que a Escola deve
elaborar e buscar responder antes de simplesmente sentenciar o “avanço” ou a “permanência”
do aluno. Tão irresponsável e perigoso quanto “reprovar” um educando sem
ter-lhe garantido a oportunidade de “avançar” é, por outro lado, “aprová-lo”
sem justificativa plausível. Tem sido muito comum o discurso que faz do
educando um perfeito idiota, como se o mesmo fosse incapaz de aprender e/ou
assumir responsabilidades. Cabe à Escola, sim, posicionar-se contrária à
indolência e à indisciplina, por exemplo. Uma educação de qualidade passa pela
valorização das práticas e iniciativas positivas, entronizando-se valores
universais, como o respeito, a ética, a honestidade, o empenho e a
responsabilidade. Esforços não devem ser medidos no intuito de resgatar o
sujeito, valorizá-lo e incluí-lo. O “fracasso” (reprovação, evasão, etc.) de
cada aluno, em regra, deve ser visto, também, como o fracasso da família, do Estado,
do diretor, do professor, do orientador, do supervisor... Trata-se de um
fracasso coletivo, de uma tragédia sem “culpados”, mas com múltiplas
responsabilidades. A Escola – assim como os hospitais e os fóruns, por exemplo –
não deve ser espaço para amadorismo. Requer muito trabalho e profissionalismo. Não
deve haver lugar para “jeitinhos” e fórmulas mágicas. Exige-se conhecimento, coerência,
planejamento, resiliência... Acreditar na EJA é apostar na possibilidade de
construirmos uma sociedade melhor. Urge a necessidade de debatê-la,
confrontá-la, eviscerá-la. Seja a Educação de Jovens e Adultos terreno fértil
para transformações individuais e coletivas. Iniciativas como a do EAD,
abrindo-se um leque de possibilidades, são muito bem-vindas, contudo
insuficientes se nossas práticas continuarem sendo as mesmas. Assim como
Lázaro, quem sabe ressuscitemos até mesmo os aparentemente já “mortos”? Para
tanto, mister é que façamos uso do poder do amor e da cumplicidade com a sorte
alheia, e não dos “cosméticos” preconizados por alguns.
Veja também:
http://institutosaofrancisco.com.br/site/artigos_visualizar.php?artigo_autenticacao_=3b66e6fdd9230d3b1c09e9f70408aefa
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