OS VÁRIOS TONS DA MORTE
Gilvan Teixeira
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Trazia ainda na lembrança o cadáver a descansar no
ataúde. Braços junto ao corpo, as mãos cruzadas sobre o peito, o terno
impecável, o silêncio entrecortado por alguns sussurros misturados ao choro
aqui e acolá. A boca a borbulhar, o algodão enfiado nas narinas. Tinha lá seus
dez ou onze anos. Talvez mais, talvez menos. Ele, não o defunto. Este, ao
contrário, era um homem passado dos quarenta. Motorista de ônibus. Segundo
diziam, teria sido acometido de um infarto fulminante. Mal tivera tempo de
parar o coletivo e pronto! Tudo acabado. Deixara um guri de tenra idade. A
viúva parecia fora de si com aquele olhar perdido a mirar não sei o quê. O
velório se dava no interior da pequena Assembleia de Deus. Naquela época era
comum, assim como o acento agudo na denominação do templo. Era a primeira vez
que tinha visto um morto assim, tão de perto. Misto de curiosidade, medo e
nojo. Não conseguia compreender o porquê do algodão no nariz e nem tampouco do
lenço a cobrir, vez por outra, o semblante pálido do sujeito. Diferentemente da
maioria, sequer cogitava tocar naquele corpo. Deveria chorar? Até que tentara.
Imaginava cenas trágicas envolvendo algum ente querido como forma de
impulsionar as lágrimas a jorrarem. Nada. Nenhuma gota. Não queria ser tomado
por insensível, mas fazer o quê? Mal conhecia o falecido. Não muito distante
daquele tempo, antes ou depois – triste memória esta que me trai –, tinha
acompanhado, meio que de longe, outro velório, o do velho Balbino, tio do
Tonico, seu pai. Era um ancião, coração enorme, jamais largava o pito e a bombacha
larga. A casa era simples, de madeira, com a patente disposta na parte dos
fundos. Parecia ainda ouvir o zumbido das varejeiras cruzando de um lado para
outro, ziguezagueando em volta das fezes misturadas à urina e uma infinidade de
papel. Como se fosse hoje, lembrava do receio que tinha de ser espiado entre as
frestas da “casinha”. Pior do que aquela sensação, só a aspereza do jornal ou
do papel de enrolar pão que fazia o vivente, menos acostumado à rudeza do
interior, pensar duas vezes antes de arriar as calças. Funeral em casa, na
sala. Colocado sobre dois bancos, dispostos nas extremidades, o caixão parecia
flutuar no meio da peça contígua à cozinha. Ele, gurizote ainda, preferia esta
última. Distante do corpo petrificado e próximo ao simpático conjunto formado
por uma mesa e algumas cadeiras com estrado de vime, onde repousava um pão de
quilo e um pote de “Mu-Mu”. Não muito longe, um relógio em forma de galinha.
Tia Mercedes, a viúva, apesar da dor pela perda do companheiro, achava forças
para acolher a cada um que chegava. Enquanto isso, passava de mão em mão o
prato de bolinhos de chuva regados a café misturado à cevada. Ruim ao paladar
do guri, acostumado com a vida urbana bem diferente daquela gente de Santa
Maria do final dos anos setenta. Depois foi a vez do Vô Juca, da Vó Ina, dos
Tios Nenê, Neno, Darci... À medida que os anos foram passando, a morte parecia
se aproximar. Chegara a vez do Tonico. A eterna inimiga tornara-se, por fim,
íntima. Passara a integrar a família. A morte é assim. Não pede passagem, nem
tampouco licença. Invade. O que outrora era conhecida, porém distante, sentara
à mesa, sem cerimônias. Indesejada, mas fazer o quê? A morte, feito aquele
primo “mala”, come e bebe conosco, sem nada a acrescentar ou retribuir. Só
castra. A partir de um certo ponto, quando já se sente dona de nossa casa,
passa a dar as cartas. É autoritária, intransigente, arrogante, insensível,
fria... Tudo parece girar em torno de seu umbigo. Mesmo odiada e mal quista,
não há um só instante em que deixe de ser lembrada. Não negocia, tamanha sua
autossuficiência. Pudera, seu poder despótico prevalece desde os tempos mais
remotos. Fica à espreita do berço, da cama, do leito de hospital, da curva na
estrada, da orla do mar, das entradas de cinemas, boates e danceterias.
Pacientemente, aguarda o momento de dar o bote fatal. Fica a contar cada gota
de soro ou de sangue, batidas cardíacas e movimentos torácicos, até a expiração
final. Apagam-se as luzes. Ao fechar das cortinas, o que vem depois? Ironicamente, só ela, a morte, é capaz de
dizer!