ASCENSORISTA[1]
Gilvan
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Terceiro, quinto, oitavo... Último, primeiro,
próximo... Desce, sobe... Não fosse a simpatia da mulher, o mantra soaria
insuportável. O corpo esguio sobre a banqueta de madeira tornava a viagem
rápida, pois que prazerosa. O “bom-dia”, “boa-tarde”, “bom trabalho”, mais do
que mero formalismo, tinha o poder de dar vida àquela gente. Grandes e
pequenos, magros e gordinhos, chefias e estagiários, todos se sentiam
acolhidos. Sempre cabia mais um. O tempo escoava de maneira especial, quase
mágica. Poucos segundos, mas suficientes para um bate-papo bem humorado, um
comentário sobre o sol ou sobre a chuva, uma queixa envolvendo aposentadoria,
contas a pagar ou dor na coluna. O elevador, mesmo que talvez a contragosto de
um ou que outro, aproximava as pessoas. Por um instante, mesmo que breve, as
tornava iguais. Ricos e pobres, doutores e analfabetos, munícipes e
estrangeiros. Cada um a entrar, uma história diferente. Uma origem, uma
trajetória, um destino... Quantos sonhos por ali passavam e haveriam de passar?
Causos e casos. Mulheres prenhes, anciãos doentes, jovens “sarados”,
hipocondríacos, anorexos, casados, separados, mudos, poliglotas. Quantas
gerações por ali passaram? Gente importante e anônimos, travestis e enrustidos,
expansivos e tímidos. Manias? Muitas. Gostos? Incontáveis. Desejos?
Irreveláveis, a maioria. O elevador era a própria síntese da vida. À frente desta
ou, ao menos do elevador, a simpática e solícita ascensorista ia para cima e
para baixo. Quanta coisa já não vira e ouvira? Queixas, lamúrias, relatos de
traidores e de traídos... Casamentos prometidos e matrimônios desfeitos. Faces
da mesma moeda. O elevador, feito um desses processadores da cozinha moderna,
juntava e misturava sentimentos, experiências e emoções. A mulher que o
conduzia, com os pequenos óculos sobre o nariz, por vezes fazia lembrar a
garotinha que tenta montar um interminável e complexo quebra-cabeça. Afinal, o
que tinha à disposição eram tão-somente pedaços de diálogos outrora iniciados
e, quase sempre, ali não finalizados. Retalhos da vida. Cabia à ascensorista,
talvez, remontá-los, sem a certeza de, ao fazê-lo, reproduzi-los de maneira
fiel. Dúvida cruel. Não fossem os sonhos a canalizá-los, enlouqueceria. Por
vezes, mesmo sem dizer, se solidarizava com este ou aquele. Tomava partido,
discreta e sorrateiramente. Intencional ou não, o fato é que um que outro “desafeto”
acabava por descer no andar errado. Um ou dois andares abaixo. O jeito era
pagar os pecados subindo alguns lances de escada. Não por acaso, sobre o corpo
da moça do elevador caía um guarda-pó que mais fazia lembrar a batina do
pároco. Este ligando o homem ao céu, enquanto ela – a ascensorista – ligando o
térreo ao topo do prédio. Acerca do destino dos fiéis, o sacerdote pouco ou
nada podia fazer. Já a moça do elevador, que inveja, tinha ao alcance dos dedos
o destino de todos.
[1]
Uma homenagem às ascensoristas de Cachoeirinha que, pacientemente, transportam
nossos corpos e sonhos para lá e para cá.