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terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O PAR DE TÊNIS

O PAR DE TÊNIS
Gilvan



            Morrera como vivera. Ainda piá, mal podia esperar o amanhecer do dia para ir à escola. Não que intencionasse estudar. Prestar atenção na explanação da coitada da professora que estrebuchava lá na frente, quase fazendo piruetas para chamar atenção da classe? Nem pensar. Não tinha tempo para isso. Queria era zoar, brincar, colocar as conversas em dia, como se um enorme tempo houvesse passado entre o último intervalo entre os períodos, quando os alunos então podiam não apenas levantar da cadeira como, ainda, conversar à vontade. Queria era mesmo mostrar o par de tênis ganho na véspera. Um Nike multicolorido, impossível de passar despercebido. Fazia questão de mostrar o presente dado pela mãe. Esta, até que tentara demovê-lo da idéia, sem sucesso. Afinal, além do preço nada módico, o filho há muito não fazia por merecer qualquer agrado. Indolente, preguiçoso, desleixado com os afazeres domésticos, irresponsável com os estudos. O guri só dava trabalho. As reclamações eram quase que diárias. Os bilhetes tomavam conta da agenda escolar. A mãe buscava justificar os pecados e deslizes do filho com alguns chavões da pós-modernidade: “é hiperativo!”, “tem déficit de atenção!”, etecétera e tal.  Sempre que chamada à escola, a reação ia da indiferença à revolta. Contra a escola, acreditem. Apesar de tudo, era o guri pedir e pronto! Lá estava o pedido em forma de presente. Mais parecia uma história mal contada do gênio da lâmpada. No lugar do gênio, uma mãe não menos pobre de espírito do que o filho. No lugar da lâmpada, o cartão de crédito a acorrentar a mulher, dia após dia, mês após mês. O guri engordava feito porco para o matadouro. O cérebro parecia diminuir à medida que aumentava a pança. Amigos, tão raros quanto os livros. Salvo, é claro, os “imaginários”. O tempo que dispensava para o chats e games faltava-lhe para os encontros reais. O pai se fora no último verão. Assim como muitos outros. Parecia não fazer falta, tal a nulidade da figura paterna em sua vida. A mãe, apesar de certa relutância, finalmente dera-lhe o tênis tão desejado. Nenhum sinal de gratidão. Nem “muito obrigado”, nem tampouco um sorriso, mesmo que tímido. O tênis era o fim em si mesmo. Para sua decepção, ninguém reparara nos pés do adolescente. Ao menos, nenhum comentário, nem de agrado e nem de desagrado. Os colegas pareciam absortos em seus próprios “brinquedinhos”: celulares, MP4, tablets e tantos outros penduricalhos nascidos da globalização. O que para o guri era novo, para os demais passara às escuras. O prazer de duas horas atrás passara a ser frustração. Assim como o crack, a merla ou o êxtase, o barato durara pouco. Muito pouco. O vazio tomara conta daquele campo fértil à tristeza camuflada pelo odor artificial, tão comum nas prateleiras dos hipermercados e shoppings da cidade. Voltava para casa quando, de repente, um desconhecido não menos jovem do que ele, arma em punho, declarou: “perdeu mano”. Perdera não apenas a vida, mas o par de tênis!

2 comentários:

  1. Uma bela ficção, pena estar tão perto da verdade. A falta de respeito ao esforço dos pais, a falta de comprometimento em investir no futuro e o controle que a tecnologia tem ganhado sobre nós, nos transformando em zumbis, que se mantem longe do mundo real e mais perto do virtual. De qualquer modo, precisamos aprender a conviver com estes "brinquedinhos", mas não podemos nos deixar dominar, pois, como qualquer droga, cria um certo vício. A história deste jovem é, sem dúvida, uma cruel realidade que muitos vivem.

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  2. Teus textos são assustadoramente lúcidos.
    Obrigado, meu amigo, por partilhar conosco.

    Se não se importa, vou compartilhar no Facebook e Twitter.

    Grande abraço!

    Leandro de Araújo

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