URUBUS
Gilvan Teixeira
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A fauna em Cachoeirinha – que da antiga queda d’água
só sobraram as lembranças registradas na memória dos quase centenários ou nas
páginas amareladas da história –, ao que parece, tem se resumido aos urubus. Sobrevoando
o céu da cidade, até que não são muitas as aves de rapina. Preferem elas, ao
que tudo indica, alguns espaços públicos. O fétido odor exalado lá para as
bandas de prédios onde público e privado se confundem e se amancebam, denuncia
a presença dos malditos bichos. Vestem, muito comumente, terno e gravata, quando
não uma bela toga a esconder a imundícia da própria natureza. Vivem da tragédia
alheia, apesar, é claro, de jamais admitirem. Poucos são os urubus letrados em
Cachoeirinha, a maioria mal consegue ir além de uma espécie de grunhido mal
elaborado, apesar de inegavelmente poderoso e convincente. Não por acaso, a
cada quatro anos, muitas dessas aves renovam suas penas e seguem monopolizando
seus ninhos, recheados de filhotes comissionados a lhe paparicarem. Qual será o
milagre de tamanha vitaliciedade? Quem sabe, a capacidade mimética de se
confundirem com o ambiente. Os urubus que por aqui gorjeiam – uma espécie de
infindável “melodia” da morte e do engodo – são de uma espécie muito similar às
do Planalto Central. Cheiram a urubu, vivem da carniça do contribuinte, mas
pousam de pavão. Talvez por isso, não larguem o naco de carne, afinal toda
aquela pesada plumagem, embora artificial, custa caro. Fazem de tudo por um
espaço na mídia, ainda que uma minúscula foto no canto da página de um
jornaleco chinfrim. O negócio é aparecer, nem que seja emitindo opiniões vazias
ou postando suas imagens bizarras nas ditas redes sociais. Nisso são bons. Os
urubus daqui são capazes até de vez em quando – quase sempre às vésperas dos
pleitos – darem uma voadinha numa vila aqui ou acolá, sujando as asas em meio à
lama deixada pela enchente ou, ainda, correndo o risco de contraírem as doenças
dos pobres mortais. O que não fazem os urubus para manterem seus privilégios
intocáveis e suas cadeiras na famigerada Casa do Povo? O que não fazem eles
para usufruírem dos momentos de glória na tribuna ou um lugarzinho junto ao
Executivo? Os urubus, assim como as baratas, são mestres na arte de
sobreviverem às intempéries e hecatombes econômicas e políticas. Sofre o
cidadão comum, o servidor (concursado) mal pago, a dona-de-casa ante a panela
vazia, a criança sem futuro e o jovem despreparado. Quanto aos urubus, salvo um
ou outro esforço a sustentar, de tempos em tempos, todas aquelas bandeirolas
multicoloridas à beira da avenida, parecem desconhecer o que seja trabalho e,
menos ainda, crise ou carestia. Ao contrário de suas presas – esfarrapadas,
maltrapilhas, viradas somente em ossos –, os urubus seguem robustos e altaneiros,
desfilando suas asas tomadas de brilho. Eles custam caro à sociedade. São
alimentados por ela e dela se alimentam. No fundo, surgem a partir dela, numa
espécie de abiogênese maldita, alimentada por um sistema político falho e
eivado de vícios. Feito Cronos, os urubus castram os ascendentes e tiram o
fôlego de vida das gerações futuras, fazendo imperar o pessimismo e a
desesperança. Restará, ainda, sob o céu da cidade outra imagem que não a da
revoada das malditas aves a esconderem o brilho do Sol?
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