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sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Tutano

TUTANO
Gilvan Teixeira



Ainda lembro de meu avô Juca grudado num osso em meio à sopa envolta na fumaça. Bem-vinda numa noite de inverno. O minuano soprava intenso lá fora, fazendo estalar as paredes de madeira. Guri, não sabia o porquê do encantamento que a cena produzia. Parece que ainda o vejo. Franzino na aparência, mas um touro para o trabalho duro. Mesmo velho, levantava sozinho uma casa. Óculos postos na ponta do nariz como a cair, o velho Juca sorvia a sopa. Vez por outra deixava soar o barulhinho característico de quem deixa passar por entre os lábios o caldo quente. Logo, o prato fundo já não abrigava a sopa, mas tão-somente um osso enorme que ocupava todo o fundo da porcelana. Com uma das mãos segurava o osso quase a escorregar entre os dedos calejados por uma história de muito trabalho. A outra segurava o garfo. Mais parecia um cirurgião a futricar com o bisturi. Olhos fixos no tutano que em parte se desprendia do interior do osso. A boca do vô Juca, já ensebada pela gordura animal, deixava vez por outra transparecer a chapa que o velho usava. Determinado em acabar com o tutano, o vô Juca não desistia. Vendo que o garfo era insuficiente, apelava para uma faquinha de ponta. Arranhava o fundo do osso, até não restar nada em seu interior. Parecia uma questão de honra.

Hoje, os tempos são outros. O velho Juca já não existe. Da mesma forma, não se come mais tutano. Os poucos que, talvez, o façam, já não demonstram a gana e persistência do meu avô. A empreitada – para os que nela se aventuram – já nasce como que perdida. Somos uma geração vencida pelo osso. O tutano a ser perseguido parece não tangível, distante em demasia para valer a pena. É como se nascêssemos mortos. Sim, geração de natimortos. Nossa juventude e os de minha idade demonstram um cansaço que parece atávico. Perdemos a capacidade de renunciar, de esperar, de espreitar. Quando esperamos, o fazemos da forma errada. Coisas erradas e da maneira errada. Esperamos sem disposição de dar algo em troca. Meu avô trocava o prazer de saborear um bom tutano pelo trabalho em obtê-lo. Todas as suas conquistas foram-lhe caras, daí o valor que lhes dava. Amava o que tinha, não por atribuir valor demasiado aos objetos, mas pelo que representavam. Pareciam sagrados. Cuidava com amor cada uma de suas ferramentas: o martelo, o serrote, o lápis que riscava a madeira... O quanto não cuidava dos seus? A Ina, minha avó, quem o diga. Estamos a formar uma geração que aprecia mais o garfo (o quanto vale...) do que sua verdadeira funcionalidade. Nos atemos à complexidade (sem compreendê-la ou analisá-la) em detrimento das coisas simples da vida.

Precisamos ensinar nossos filhos a comerem tutano. Para tanto, mister é que nós mesmos aprendamos a comê-lo. Fazer uso dos talheres. Sejamos mais pacienciosos, menos inquietos e não tão dados ao consumo desenfreado e irresponsável. Deixemos nossas crianças e jovens “roerem” o osso, darem-se ao trabalho de buscarem o tutano que nele se esconde. Saudades do meu avô.

Leia mais:
http://www.sinepe-rs.org.br/core.php?snippet=artigos_interna&id=13810
http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/home.jsp?localizador=Zero%20Hora/Zero%20Hora/Palavra+do+Leitor/70480&secao=visualizar

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