LUGAR DE ALUNO É NA ESCOLA
Prof. Gilvana Teixeira
e-mail: profpreto@gmail.com
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br
A
Constituição Federal, em seu início, traz:
Art.
1º A República Federativa do Brasil, [...] constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
É
sabido o papel
que a escola tem,
seja na construção
da cidadania,
seja na defesa
e promoção
da dignidade da pessoa humana.
Para tanto, há de se garantir
o acesso e permanência do educando aos bancos escolares.
A Carta diz, ainda:
Ou ainda:
Art.
205. A educação,
direito de todos
e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando
ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania
e sua qualificação para o trabalho.
[…]
Trata-se
a escola, como se vê, de um lugar privilegiado na construção não
apenas do saber formal, mas também na formação da cidadania. O
educando – especialmente crianças e adolescentes – precisa ser
entendido como alguém em processo de desenvolvimento. A Lei das
Diretrizes e Bases da Educação (LDB, Lei Federal nº 9394 de 1996)
segue nesse diapasão:
Art.
2º A educação,
dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade
e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade
o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da
cidadania e
sua qualificação para o trabalho2.
Ora, se o educando fosse um sujeito “pronto” (inclusive sob o
ponto de vista comportamental), qual seria a razão de ser da
escola3?
Não por acaso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA- Lei
Federal nº 8069 de 1990), veio enfatizar a necessidade
(obrigatoriedade) de um olhar diferenciado à criança e adolescente.
Art.
3º A criança
e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral
de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes,
por lei ou por outros meios, todas
as oportunidades e facilidades,
a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social,
em condições de liberdade e de dignidade.
[…]
Repara-se
na expressão “todas as oportunidades e facilidades” voltadas ao
desenvolvimento, inclusive, “moral” do educando. Assim, atos de
indisciplina, por exemplo, devem – salvo casos muito graves, que
configurem atos infracionais – servir de matéria-prima para
formação do sujeito, não para sua exclusão da escola. É
reparável o dano causado pelo aluno? Que assim se faça4,
tendo o cuidado para jamais fugir ao previsto nos documentos oficiais
da escola (PPP5,
Regimento, Estatuto Disciplinar, etc.) e na legislação.
Diz
o ECA:
Art.
15. A criança
e o adolescente têm direito
à liberdade, ao respeito e à
dignidade como pessoas humanas em processo
de desenvolvimento
e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na
Constituição e nas leis.
Portanto, sair em defesa do direito do educando, nem de perto pode
ser confundido com aquiescência ou conivência frente à
indisciplina escolar. Como não pode, também, o ECA ser visto como
“escudo” voltado à permissividade irresponsável e
inconsequente6.
Ora, o que se pretende, isso sim, é proteger a “pessoa”
(sujeito), não o ato por ela praticado. O ECA lembra:
Art.
6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins
sociais
a que ela se dirige, as exigências
do bem comum,
os direitos
e deveres individuais e coletivos,
e a condição
peculiar da criança e do adolescente como pessoas em
desenvolvimento.
Percebe-se,
claramente, a intenção do legislador em enfatizar que o interesse
coletivo (consubstanciado nas regras, inclusive escolares), bem como
a “equação” entre direitos e deveres devem ser preservados, mas
sempre (obrigatoriamente!) levando-se em conta a “condição
peculiar” (alguém em franco processo de formação) do educando.
Vale lembrar, ainda, que a dita “indisciplina escolar”, quase
sempre, é fruto de um leque de fatores: incompetência dos pais em
estabelecerem e exigirem limites, inexistência ou fragilidade das
regras de convivência dentro da escola, incoerência dos professores
(exigem o que não fazem), precariedade no atendimento em “rede”
face à indisciplina (professor – pais – SOE – profissionais da
saúde – Direção – Conselho Escolar – Conselho Tutelar –
Ministério Público – Juizado da Infância e da Juventude, etc.),
“liquidez” cultural (Bauman), relativismo doentio, frouxidão na
aplicação da lei, dentre outros, sem esquecer, é claro, a
(ir)responsabilidade do próprio aluno. Sendo, portanto, a
indisciplina escolar um assunto de tamanha complexidade, tratá-la de
forma simplista soa como pouco inteligente, temerário e imprudente.
Aplicar medidas equivocadas é tão perigoso quanto não aplicá-las,
aumentando o risco de termos efeitos colaterais indesejados, como a
reincidência, agudização do problema, retroalimentação do ciclo
vicioso da violência e indisciplina escolares, judicialização da
relação professor-aluno ou escola-família, etc.. Ninguém ganha,
todos perdem!
Não se trata,
assim, de vedar os olhos ante à indisciplina escolar, mas de buscar
alternativas e saídas que promovam o fortalecimento de valores
(solidariedade, respeito, honestidade, ética, comprometimento, etc.)
e uma maior robustez da teia social. Vale lembrar que previsão legal
para eventuais “sanções” frente à quebra de regras sociais,
por parte de adolescentes, já existe. Maior exemplo disso é o
próprio ECA (acusado de “permissivo” pelos leigos no assunto…),
ao trazer as chamadas “medidas socieducativas”, aplicáveis
quando da prática de atos infracionais:
Art.
103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou
contravenção penal.
Diz, ainda:
Art.
112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade
competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:
§
1º A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua
capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da
infração.
[…]
Vale
lembrar que a “conotação” dada às medidas, aplicáveis aos que
estão sob a proteção do ECA, tem cunho pedagógico e não
punitivo:
Art.
100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades
pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos
vínculos familiares e comunitários.
[...]
II
- proteção integral e prioritária: a interpretação
e aplicação de toda e qualquer norma contida nesta Lei deve ser
voltada à proteção
integral e prioritária dos direitos de que crianças e adolescentes
são titulares;
IV
- interesse superior da criança e do adolescente: a intervenção
deve atender prioritariamente aos interesses e direitos
da criança e do
adolescente,
sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses
legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso
concreto;
V
- privacidade: a promoção dos direitos e proteção da criança e
do adolescente
deve ser efetuada no respeito
pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada;
VI
- intervenção precoce: a intervenção
das autoridades
competentes deve ser efetuada
logo que a situação de perigo seja conhecida;
VII
- intervenção mínima: a
intervenção deve
ser exercida exclusivamente pelas autoridades e instituições cuja
ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à
proteção
da criança e do adolescente;
VIII
- proporcionalidade e atualidade: a intervenção
deve ser a necessária e adequada
à situação de perigo em que a criança ou o adolescente se
encontram no
momento em que a decisão é tomada;
IX
- responsabilidade parental: a intervenção deve ser efetuada de
modo que os pais
assumam os seus deveres
para com a criança e o adolescente;
[...]
XI
- obrigatoriedade da informação: a criança e o adolescente,
respeitado seu estágio de desenvolvimento e capacidade de
compreensão, seus
pais ou responsável devem ser informados dos seus direitos, dos
motivos que determinaram a intervenção e da forma como esta se
processa;
A
“expulsão” (numa linguagem mais eufemista, “transferência
compulsória”) - ou mesmo a “suspensão” - de um aluno precisa
ser analisada com muita cautela. É
possível, sob o ponto de vista legal? Apesar das controvérsias,
parece que sim, até porque são inúmeros os casos em que tiveram
(expulsão e suspensão) a chancela do Judiciário. Contudo, apesar
de “possível”, não é – salvo raríssimas exceções –
recomendável.
Ainda que grave o ato praticado pelo aluno (adolescente), a ponto de
configurar um “ato infracional”, cabe à escola analisar aspectos
como: gravidade do ato, consequências, circunstâncias (por que,
como ocorreu?), reincidência (o aluno transgressor tem registros
anteriores? quais? quando? combinações que foram feitas? medidas
que foram tomadas?). Feito isso, a escola precisa chamar as partes
envolvidas e, se possível, criar um “canal” pautado no diálogo
(ver Círculos Restaurativos!) e resolução conciliatória de
conflitos. Deve-se garantir ao “acusado” a ampla defesa e o
contraditório, devidamente registrado e assinado (sendo aluno menor,
com a presença do responsável). O
pano de fundo de todos esses “movimentos” feitos pela instituição
deve ser a formação do educando, de maneira a que cresça enquanto
cidadão e partícipe da sociedade, aprendendo a respeitar (a si e ao
“outro”) e a conviver.
A “suspensão” - muito mais ainda, a “expulsão” - deve ser
vista como medida extrema e atestatória da incapacidade da sociedade
(aluno, família, escola, Estado) em resolver suas contradições.
Caso a escola insista na aplicação de tais medidas, deverá, ainda,
estar respaldada nos seus próprios documentos norteadores, como a
PPP, Regimento e Estatuto Disciplinar, sob o risco de não o fazendo
ser responsabilizada e ter que voltar atrás em sua decisão.
1Todos
os grifos são meus.
2Comparar
com o Art. 53 da Lei Federal nº 8069/1990 – ECA).
3O
Parecer CNE/CP nº 8/2012, diz:
[…] o conflito no ambiente educacional é pedagógico
uma vez que por meio dele podem ser discutidos diferentes
interesses, sendo possível, com isso, firmar acordos pautados pelo
respeito e promoção aos Direitos Humanos. Além disso, a
função pedagógica da mediação permite que os sujeitos em
conflito possam lidar com suas divergências de forma autônoma,
pacífica e solidária, por intermédio de um diálogo
capaz de empoderá-los para a participação ativa na vida em
comum, orientada por valores baseados na solidariedade, justiça e
igualdade.
4O
Parecer CEED/RS nº 282/2015 traz: “Nesse contexto, se defende
a sanção por reciprocidade que está diretamente
relacionada com a falta praticada, ensinando o respeito às regras,
que são construídas de forma participativa e de conhecimento do
grupo, estando ancoradas em propósitos de cooperação e
igualdade”.
5Proposta
Político-Pedagógica.
6Não
apenas o ECA traz, implicitamente, obrigações aos “menores”. O
Código Civil Brasileiro (Lei Federal nº 10.406/2002), ao
tratar sobre o exercício do poder familiar, diz:
Art.
1.634. Compete
a ambos os pais,
qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno
exercício do poder familiar,
que consiste em, quanto
aos filhos:
[…]
IX
- exigir
que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de
sua idade e condição.
Resta claro, como se vê no dispositivo acima, que, primeiro, o
ordenamento jurídico brasileiro não é “permissivo”, mas isto
sim, desconhecido e/ou mal aplicado. Segundo, que o papel de
“autoridade” (dos pais, professores, etc.) vai muito além de
uma mera (mas importante) previsão legal, necessita ser construído
e mantido por meio de posturas e ações coerentes com a função.
Nenhum comentário:
Postar um comentário