Translate

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

LUGAR DE ALUNO É NA ESCOLA


LUGAR DE ALUNO É NA ESCOLA
Prof. Gilvana Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br


     A Constituição Federal, em seu início, traz:
 Art. 1º A República Federativa do Brasil, [...] constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
 II - a cidadania;
 III - a dignidade da pessoa humana;
 […]




     É sabido o papel que a escola tem, seja na construção da cidadania, seja na defesa e promoção da dignidade da pessoa humana. Para tanto, há de se garantir o acesso e permanência do educando aos bancos escolares. A Carta diz, ainda:
Art. 6º São direitos sociais a educação1, [...], na forma desta Constituição.

     Ou ainda:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
[…]

     Trata-se a escola, como se vê, de um lugar privilegiado na construção não apenas do saber formal, mas também na formação da cidadania. O educando – especialmente crianças e adolescentes – precisa ser entendido como alguém em processo de desenvolvimento. A Lei das Diretrizes e Bases da Educação (LDB, Lei Federal nº 9394 de 1996) segue nesse diapasão:
Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho2.
Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;


     Ora, se o educando fosse um sujeito “pronto” (inclusive sob o ponto de vista comportamental), qual seria a razão de ser da escola3? Não por acaso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA- Lei Federal nº 8069 de 1990), veio enfatizar a necessidade (obrigatoriedade) de um olhar diferenciado à criança e adolescente.
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
[…]


     Repara-se na expressão “todas as oportunidades e facilidades” voltadas ao desenvolvimento, inclusive, “moral” do educando. Assim, atos de indisciplina, por exemplo, devem – salvo casos muito graves, que configurem atos infracionais – servir de matéria-prima para formação do sujeito, não para sua exclusão da escola. É reparável o dano causado pelo aluno? Que assim se faça4, tendo o cuidado para jamais fugir ao previsto nos documentos oficiais da escola (PPP5, Regimento, Estatuto Disciplinar, etc.) e na legislação.


     Diz o ECA:
Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.


     Portanto, sair em defesa do direito do educando, nem de perto pode ser confundido com aquiescência ou conivência frente à indisciplina escolar. Como não pode, também, o ECA ser visto como “escudo” voltado à permissividade irresponsável e inconsequente6. Ora, o que se pretende, isso sim, é proteger a “pessoa” (sujeito), não o ato por ela praticado. O ECA lembra:
Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.


     Percebe-se, claramente, a intenção do legislador em enfatizar que o interesse coletivo (consubstanciado nas regras, inclusive escolares), bem como a “equação” entre direitos e deveres devem ser preservados, mas sempre (obrigatoriamente!) levando-se em conta a “condição peculiar” (alguém em franco processo de formação) do educando. Vale lembrar, ainda, que a dita “indisciplina escolar”, quase sempre, é fruto de um leque de fatores: incompetência dos pais em estabelecerem e exigirem limites, inexistência ou fragilidade das regras de convivência dentro da escola, incoerência dos professores (exigem o que não fazem), precariedade no atendimento em “rede” face à indisciplina (professor – pais – SOE – profissionais da saúde – Direção – Conselho Escolar – Conselho Tutelar – Ministério Público – Juizado da Infância e da Juventude, etc.), “liquidez” cultural (Bauman), relativismo doentio, frouxidão na aplicação da lei, dentre outros, sem esquecer, é claro, a (ir)responsabilidade do próprio aluno. Sendo, portanto, a indisciplina escolar um assunto de tamanha complexidade, tratá-la de forma simplista soa como pouco inteligente, temerário e imprudente. Aplicar medidas equivocadas é tão perigoso quanto não aplicá-las, aumentando o risco de termos efeitos colaterais indesejados, como a reincidência, agudização do problema, retroalimentação do ciclo vicioso da violência e indisciplina escolares, judicialização da relação professor-aluno ou escola-família, etc.. Ninguém ganha, todos perdem!

     Não se trata, assim, de vedar os olhos ante à indisciplina escolar, mas de buscar alternativas e saídas que promovam o fortalecimento de valores (solidariedade, respeito, honestidade, ética, comprometimento, etc.) e uma maior robustez da teia social. Vale lembrar que previsão legal para eventuais “sanções” frente à quebra de regras sociais, por parte de adolescentes, já existe. Maior exemplo disso é o próprio ECA (acusado de “permissivo” pelos leigos no assunto…), ao trazer as chamadas “medidas socieducativas”, aplicáveis quando da prática de atos infracionais:
Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.


     Diz, ainda:
Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:
I - advertência;
II - obrigação de reparar o dano;
III - prestação de serviços à comunidade;
IV - liberdade assistida;
V - inserção em regime de semiliberdade;
VI - internação em estabelecimento educacional;
VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.
§ 1º A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração.
[…]


     Vale lembrar que a “conotação” dada às medidas, aplicáveis aos que estão sob a proteção do ECA, tem cunho pedagógico e não punitivo:
Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
Parágrafo único.  São também princípios que regem a aplicação das medidas:    
[...]    
II - proteção integral e prioritária: a interpretação e aplicação de toda e qualquer norma contida nesta Lei deve ser voltada à proteção integral e prioritária dos direitos de que crianças e adolescentes são titulares;     
[...]
 IV - interesse superior da criança e do adolescente: a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;  
 V - privacidade: a promoção dos direitos e proteção da criança e do adolescente deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada; 
 VI - intervenção precoce: a intervenção das autoridades competentes deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida;   
VII - intervenção mínima: a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas autoridades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do adolescente;      
VIII - proporcionalidade e atualidade: a intervenção deve ser a necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou o adolescente se encontram no momento em que a decisão é tomada;         
IX - responsabilidade parental: a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o adolescente;       
[...]
XI - obrigatoriedade da informação: a criança e o adolescente, respeitado seu estágio de desenvolvimento e capacidade de compreensão, seus pais ou responsável devem ser informados dos seus direitos, dos motivos que determinaram a intervenção e da forma como esta se processa;  
[...]

     A “expulsão” (numa linguagem mais eufemista, “transferência compulsória”) - ou mesmo a “suspensão” - de um aluno precisa ser analisada com muita cautela. É possível, sob o ponto de vista legal? Apesar das controvérsias, parece que sim, até porque são inúmeros os casos em que tiveram (expulsão e suspensão) a chancela do Judiciário. Contudo, apesar de “possível”, não é – salvo raríssimas exceções – recomendável. Ainda que grave o ato praticado pelo aluno (adolescente), a ponto de configurar um “ato infracional”, cabe à escola analisar aspectos como: gravidade do ato, consequências, circunstâncias (por que, como ocorreu?), reincidência (o aluno transgressor tem registros anteriores? quais? quando? combinações que foram feitas? medidas que foram tomadas?). Feito isso, a escola precisa chamar as partes envolvidas e, se possível, criar um “canal” pautado no diálogo (ver Círculos Restaurativos!) e resolução conciliatória de conflitos. Deve-se garantir ao “acusado” a ampla defesa e o contraditório, devidamente registrado e assinado (sendo aluno menor, com a presença do responsável). O pano de fundo de todos esses “movimentos” feitos pela instituição deve ser a formação do educando, de maneira a que cresça enquanto cidadão e partícipe da sociedade, aprendendo a respeitar (a si e ao “outro”) e a conviver. A “suspensão” - muito mais ainda, a “expulsão” - deve ser vista como medida extrema e atestatória da incapacidade da sociedade (aluno, família, escola, Estado) em resolver suas contradições. Caso a escola insista na aplicação de tais medidas, deverá, ainda, estar respaldada nos seus próprios documentos norteadores, como a PPP, Regimento e Estatuto Disciplinar, sob o risco de não o fazendo ser responsabilizada e ter que voltar atrás em sua decisão.




1Todos os grifos são meus.
2Comparar com o Art. 53 da Lei Federal nº 8069/1990 – ECA).
3O Parecer CNE/CP nº 8/2012, diz:
[…] o conflito no ambiente educacional é pedagógico uma vez que por meio dele podem ser discutidos diferentes interesses, sendo possível, com isso, firmar acordos pautados pelo respeito e promoção aos Direitos Humanos. Além disso, a função pedagógica da mediação permite que os sujeitos em conflito possam lidar com suas divergências de forma autônoma, pacífica e solidária, por intermédio de um diálogo capaz de empoderá-los para a participação ativa na vida em comum, orientada por valores baseados na solidariedade, justiça e igualdade.
4O Parecer CEED/RS nº 282/2015 traz: “Nesse contexto, se defende a sanção por reciprocidade que está diretamente relacionada com a falta praticada, ensinando o respeito às regras, que são construídas de forma participativa e de conhecimento do grupo, estando ancoradas em propósitos de cooperação e igualdade”.
5Proposta Político-Pedagógica.
6Não apenas o ECA traz, implicitamente, obrigações aos “menores”. O Código Civil Brasileiro (Lei Federal nº 10.406/2002), ao tratar sobre o exercício do poder familiar, diz:
Art. 1.634.  Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos
[…]
IX - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.  
Resta claro, como se vê no dispositivo acima, que, primeiro, o ordenamento jurídico brasileiro não é “permissivo”, mas isto sim, desconhecido e/ou mal aplicado. Segundo, que o papel de “autoridade” (dos pais, professores, etc.) vai muito além de uma mera (mas importante) previsão legal, necessita ser construído e mantido por meio de posturas e ações coerentes com a função.

Nenhum comentário:

Postar um comentário