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quarta-feira, 12 de junho de 2019

SUPORTABILIDADE: PARA QUEM?

SUPORTABILIDADE: PARA QUEM?
Prof. Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br



            Os tempos são outros. Não faz muito, pessoas com deficiência eram, muito comumente, “invisíveis” à sociedade. Alijadas da escola, por exemplo, pouco conheciam senão as paredes da própria casa, só não menores e mais descoloridamente frias do que o acolhimento neste mundão de Deus. Verdadeiros “bichinhos da goiaba”, a presença delas soava como inoportuna, incômoda numa sociedade autointitulada de “normal”. Pareciam encarnar a triste história do Corcunda de Notre Dame, porém muito mais cruel e sombria, dado que verdadeira. Enclausurados ficavam não apenas os seus corpos – não raras vezes atrofiados pela indiferença e ignorância alheias –, mas seus sonhos e potencialidades. Aos poucos, contudo, tensionada pela incansável luta e teimosia de algumas pessoas e entidades da sociedade civil organizada, a legislação passou a contemplar os direitos desse público e importantes políticas públicas foram se estabelecendo. A Constituição de 1988 não deixa dúvidas quanto ao tratamento a ser dado às pessoas com deficiência:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais[1] da República Federativa do Brasil:
[…]
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.


            O acolhimento às pessoas com deficiência é, portanto, basilar na própria existência da República brasileira. A Carta traz, ainda:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

           
            Às pessoas com deficiência foi garantida não apenas a igualdade – princípio fundamental da dignidade da pessoa humana –, mas proteção especial por parte do Poder Público, conforme se lê:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
[…]
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;  

           
            No que tange à educação, a garantia não destoa:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
[…]
III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;
[…]
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;
[...]


            A legislação pátria é farta em preceitos garantidores e assecuratórios de direitos educacionais atinentes às pessoas com deficiência. Exemplos disso são a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Federal nº 9.394/1996), bem como os Estatutos da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069/1990) e da Pessoa com Deficiência (Lei Federal nº 13.146/2015). Este último, diga-se de passagem, já em seu primeiro Artigo, diz:

Art. 1º É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.


            Lê-se, ainda:

Art. 27. A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem.

            O Estatuto acima (Lei nº 13.146/2015) não deixa dúvidas, primeiro, quanto ao direito do educando com deficiência e, segundo, quanto à necessidade de um olhar diferenciado em relação a ele. Na esfera do Município, vê-se a mesma preocupação. O Plano Municipal de Educação, alterado pela Lei nº 4040/2015, dentre suas “metas”, traz:

Meta 4: Universalizar, para a população de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino, com a garantia de sistema educacional inclusivo, de salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados, públicos ou conveniados.
Estratégias:
[…]
Garantir a oferta de educação inclusiva com qualidade, de acordo com a suportabilidade de tempo de permanência no espaço em sala de aula, respeitando a individualidade e necessidades de cada aluno.
[...]

            Resta claro, portanto, que a suportabilidade prevista acima é “do” e “para” o educando, não para o professor, escola e/ou para família. Assim, eventual redução no tempo de permanência do aluno com deficiência deve estar amparada na necessidade e bem-estar do educando e não de terceiros. Quaisquer outros argumentos (falta de recursos humanos, precariedade física das instituições escolares, carência técnica dos profissionais no ambiente escolar, etc.), provavelmente, restarão inconsistentes ante eventual ação judicial movida em nome dos alunos com deficiência para que permaneçam na escola durante todo o turno. O critério fundante para suportabilidade deve ser técnico, respaldado, portanto, em avaliações oriundas de profissionais devidamente habilitados. Não cabe à escola ser depósito de pessoas (quase sempre crianças) com deficiência, a servir de “família substituta”, enquanto os genitores dão conta de seus afazeres, por mais nobres que sejam. Tampouco, a escola deve ser espaço de exclusão e insensibilidade. Sua função é, sobretudo, pedagógica! Tem sim o condão de “cuidar”, este, contudo, subsidiário da função precípua da escola, a de “educar”.

            A decisão pela redução no tempo de permanência na escola do aluno com deficiência (suportabilidade) está para o profissional do SAEE (Serviço de Atendimento Educacional Especializado) assim como o receituário está para o médico. A competência para decidir por tal redução é do profissional especializado (salvo se, de forma fundamentada, for atacada por outra decisão de melhor ou maior valor), não da família, do conselheiro tutelar ou de pessoas “estranhas” à escola. As decisões e encaminhamentos desta última precisam ser respeitadas e socialmente reconhecidas, desde que pedagógica e legalmente justas.

            Vale lembrar que a própria legislação reconhece os limites do “possível” e do “razoável” no que tange ao atendimento à pessoa com deficiência. Um é o mundo “real” e outro o “ideal”. O Estatuto da Pessoa com Deficiência, por exemplo, em seu Art. 3º, VI, ao tratar das “adaptações razoáveis”, conceitua:

Art. 3º Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se:
[...]
VI - adaptações razoáveis: adaptações, modificações e ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional e indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que a pessoa com deficiência possa gozar ou exercer, em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos e liberdades fundamentais.

            Infelizmente, em que pese as boas intenções, tem sido comum e crescente um processo de “desautorização” e enfraquecimento da autoridade (aqui entendida sob o aspecto técnico) da escola e de seus agentes. Não que suas decisões estejam a salvo de críticas e contestações, mas que se preserve a premissa de que ninguém melhor do que os profissionais da educação (professores, especialistas, etc.) para dela tratar e sobre ela opinar.



[1]     Todos os grifos são meus. 

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