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sábado, 12 de julho de 2014

A CARA DO MORTO


A CARA DO MORTO
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br


                Mais um Conselho de Classe. Vira e mexe, é quase sempre a mesma história. Discute-se a “cara” do morto e não sua causa mortis. Desloca-se o foco da discussão para o vértice do iceberg (a ínfima pontinha que emerge do oceano) e não para o imenso e complexo bloco escondido sob as águas geladas e profundas. Por quê? Talvez por ser mais fácil e menos incômoda a observação. Qual é o sentido de discutir aquilo que é óbvio? Ora, que o morto está ali, estirado sobre o ataúde, todos sabem. Vã é a tentativa de melhorar a cara do finado. Apor um asterisco aqui ou acolá, objetivando diminuir o número de reprovados em favor dos “evadidos”, é como passar blush no “presunto”, não resolve o problema e pouco serve para mascará-lo. O corpo segue gelado, o cheiro típico permanece e, para piorar, aquelas mosquinhas insistentes fazem lembrar tratar-se de um velório. Por que o aluno reprovou ou, usando um (mais um!) eufemismo, “permaneceu”? Por que desistiu e quem o fez? Terá sido o aluno a abandonar a Escola ou esta (nós!) o largou de mão? Quem sabe, ambos? Quais as razões para tamanha fuga? Urge deixarmos de lado o amadorismo e a superficialidade. O esforço hercúleo e louvável de sair em busca de adolescentes e adultos para ocuparem as classes na EJA será em vão, caso não consigamos estancar a hemorragia discente. Qual é o caminho? Acredito inexistir um, já dado e pronto. Precisamos, coletivamente, buscar uma ou mais saídas para o problema. Ela(s) passa(m), obrigatória e necessariamente, primeiro, pelo “querer” de cada profissional, pela disposição individual em pesquisar, repensar, planejar e trabalhar com vistas ao interesse coletivo. Este último, diga-se de passagem, extrapola qualquer espécie de corporativismo funcional doentio e, a priori, deve estar consubstanciado na Proposta Político-Pedagógica, bem como no Regimento Escolar. Todos, em especial os educadores, devem conhecer os documentos norteadores da Instituição. Como é a comunidade no entorno da Escola? Qual o perfil “médio” do público que busca matrícula na EJA? Qual é a “cara” que desejamos dar à EJA? Qual a formação mínima que o educando deve ter ao finalizar o curso? O que defendemos enquanto princípios de convivência? Enfim, inúmeras são as perguntas que a Escola deve elaborar e buscar responder antes de simplesmente sentenciar o “avanço” ou a “permanência” do aluno. Tão irresponsável e perigoso quanto “reprovar” um educando sem ter-lhe garantido a oportunidade de “avançar” é, por outro lado, “aprová-lo” sem justificativa plausível. Tem sido muito comum o discurso que faz do educando um perfeito idiota, como se o mesmo fosse incapaz de aprender e/ou assumir responsabilidades. Cabe à Escola, sim, posicionar-se contrária à indolência e à indisciplina, por exemplo. Uma educação de qualidade passa pela valorização das práticas e iniciativas positivas, entronizando-se valores universais, como o respeito, a ética, a honestidade, o empenho e a responsabilidade. Esforços não devem ser medidos no intuito de resgatar o sujeito, valorizá-lo e incluí-lo. O “fracasso” (reprovação, evasão, etc.) de cada aluno, em regra, deve ser visto, também, como o fracasso da família, do Estado, do diretor, do professor, do orientador, do supervisor... Trata-se de um fracasso coletivo, de uma tragédia sem “culpados”, mas com múltiplas responsabilidades. A Escola – assim como os hospitais e os fóruns, por exemplo – não deve ser espaço para amadorismo. Requer muito trabalho e profissionalismo. Não deve haver lugar para “jeitinhos” e fórmulas mágicas. Exige-se conhecimento, coerência, planejamento, resiliência... Acreditar na EJA é apostar na possibilidade de construirmos uma sociedade melhor. Urge a necessidade de debatê-la, confrontá-la, eviscerá-la. Seja a Educação de Jovens e Adultos terreno fértil para transformações individuais e coletivas. Iniciativas como a do EAD, abrindo-se um leque de possibilidades, são muito bem-vindas, contudo insuficientes se nossas práticas continuarem sendo as mesmas. Assim como Lázaro, quem sabe ressuscitemos até mesmo os aparentemente já “mortos”? Para tanto, mister é que façamos uso do poder do amor e da cumplicidade com a sorte alheia, e não dos “cosméticos” preconizados por alguns.  

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terça-feira, 1 de julho de 2014

AS PEDRAS DE DAVI


AS PEDRAS DE DAVI
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br



                Certa feita, tive o privilégio de ouvir numa reunião de escola alguém falar das pedras de Davi. Quais são as “pedras” que temos escolhido para lançarmos em direção ao “Golias” que, a todo instante, atravessa nossa vida? Têm sido as pedras certas? Têm sido as pedras apropriadas? Temos assistido levas e levas de homens e mulheres, de todas as idades, condições socioeconômicas das mais diversas, instruídos ou não, religiosos ou agnósticos, enfim, miríades e miríades a usarem de pedras que mais parecem bumerangues, onde a grande vítima acaba por ser aquele que as lançou. Enquanto isso, o algoz se fortalece. Ao invés de um, passam a ser dois, três, quatro incontáveis e intermináveis problemas... A seiva que, talvez, já não fosse intensa, esvai-se ainda mais. O inimigo se fortalece. Por que há tantos que lapidam a si mesmos? Apedrejam-se? Voltam-se contra as próprias entranhas? Alimentam tumores do corpo e da alma? Espantam o sono e afugentam os sonhos? Homens e mulheres tristes e entristecedores. Contam nos dedos os momentos de felicidade e fazem vistas grossas à vida que brota a cada instante, em cada canto, em cada sorriso, em cada abraço. Pais que sofrem e fazem sofrer a prole, negando a esta o norte ou fazendo da paternidade uma espécie de roleta russa, onde – salvo os poucos lampejos de sorte – a droga, a indolência, a indisciplina e a morte espreitam e comprometem o futuro. Homens e mulheres que fazem da depressão uma espécie de moda, garganteando a dependência terapêutica e farmacológica. Entregam-se a um mundo de “faz-de-conta”, marcado pelo consumismo doentio e árido de valores perenes. Homens e mulheres que esperam do Estado, dos “outros” (amigos ou não) e dos filhos aquilo que jamais cultivaram. É crível que o lavrador colha o que jamais semeou? Qual é o Golias que desejamos enfrentar? Qual sua real força e tamanho? Quem o alimenta e de que forma? Não será ele, no fundo, a sombra ampliada por nós produzida? Onde reside a maior ameaça, no tamanho do inimigo à nossa frente ou na imagem que dele fazemos? Pedras, há muitas. Tamanhos, formas e cores das mais variadas. Talvez estejamos escolhendo as erradas, as mais (ou menos) acessíveis, as mais (ou menos) pesadas, as pouco resistentes... Urge certa dose de sabedoria para escolhê-las. Por que não ouvir a voz do coração? Por que não dar espaço ao silêncio que instrui? Por que não apostar no amor? Por que não confiar? Por que não dobrar-se sobre os joelhos e chorar? Por que não entregar-se à humildade? O verdadeiro gigante, quem é? Pertence a quem o nosso destino? Qual é o tamanho e o foco de nossos sonhos e desejos? Façamos das pedras poderosas armas, matérias-primas para edificação de estradas que apontem para um ser humano melhor. Pedras a adornarem mosaicos formados de solidariedade, ética, respeito, alteridade... Cumpram elas outro papel que não o de nossa lápide, sob o olhar zombeteiro e triunfal de Golias.  

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