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sábado, 19 de abril de 2014

CONJUNTIVITE


 CONJUNTIVITE
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br



                Dez dias. Não aguentava mais. Olhar o mundo como que pela metade era algo, por demais, sofrível. Perdera a conta de quantos curativos descartáveis, embebidos em chá de camomila, depositara sobre o dito cujo. Sem falar, é claro, no oceano de gotas a pingar do colírio. Cada uma delas causava-lhe certo mal estar, menos pelo contato com a córnea do que pelo risco de desembolsar mais um punhado de reais na compra de um novo frasco. Melhor, “frasquinho”, não mais do que 05 (CINCO!!!!) mililitros de um composto que, pelo preço, devem ter sido extraídos direto do trono divino. Devia ser benta aquela água, tamanho o valor cobrado pelas farmácias. Apesar disso, o colírio parecia ser feito leite, adulterado. Passado tantos dias, o olho direito seguia encarnado e, quase que totalmente, fechado. Fora aquela dor que surgia cada vez que deslocava o olhar para esta ou aquela direção... Dirigir soava como um flagelo, ainda mais quando havia claridade, natural ou artificial. Resumindo, sempre! A sensação de estar sendo observado pelos outros era ainda pior. A impressão é que a velhinha do supermercado, já à beira da morte, parecia mais preocupada em encará-lo (ao OLHO!) do que com o degrau a sua frente. Até os pequenos não deixavam passar em branco. Lançavam o olhar em direção à vista inchada e começavam a chorar. Eles e o cara do olho. A maldita conjuntivite parecia ter hora certa para lacrimejar. Bastava ter alguém por perto e lá estava ela a se manifestar. Gostava de chamar atenção. Mais fazia lembrar aquelas mulheres de cabaré barato, enfiadas em seus vestidos avermelhados, ancas enormes e coxas carnudas. Tudo, menos passarem despercebidas. A conjuntivite, da mesma forma. Feito marafona, insiste em dormir com a gente. Por mais que tentemos escondê-la, sempre dá as caras. Tipo aquele primo chato! A gente conversa daqui e desconversa dali, rezando para o sujeito ir embora, e nada. Consulta o relógio, boceja de forma grosseira e o primo segue inerte, nada de tomar suas coisas e se despedir. Até que bate o desespero: apela-se para os arrotos e flatulências. O sujeito nem de perto esboça um adeus. A conjuntivite, com ela, é a mesma coisa. Talvez, a única vantagem desta sobre aquele é que a conjuntivite, normalmente, é menos frequente e mais espaçada em suas “visitas”. É verdadeira estraga-prazer. Pior do que uma conjuntivite é tê-la em véspera de feriadão. Sabe, daqueles feriados que a humanidade espera décadas, séculos, milênios para ter? Feriados mais incomuns do que o encontro, na mesma órbita, da Terra, da Lua, do Sol e de todos os planetas e corpos celestes de nosso sistema? Pois é... Cinco dias de feriado (o mesmo número de mililitros do maldito frasco: merda de coincidência!). Todo esse tempo em casa, sob uma espécie de lusco-fusco para não agredir o olho machucado. Todos lançam sobre o infeliz um olhar de desaprovação: a mulher, os filhos, até mesmo o cachorro... Praia? Serra? Shopping? Não, nada disso. Casa! Dispensável é dizer que são dias de absoluta carestia sexual. Fazer o quê? Sexta-feira santa, diriam as carolas de plantão. Nenhum prazer. Pior, acumulando sobre a mesa da sala de jantar um incontável número de provas, trabalhos e planos de aula para serem corrigidos, revisados e retomados. Pareciam zombar do estado vil do sujeito com olho avermelhado. Pareciam desafiá-lo, certos da impotência do coitado. Atormentá-lo, ao que se via, também parecia ser intento de todo aquele material infame, perverso e desumano. Não fosse a conjuntivite forte aliada da inércia laboral, veriam eles o que é bom p’ra tosse. Quanto ao olho... Próxima semana, a gente conversa. 

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