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sábado, 21 de dezembro de 2013

O BOM VELHINHO


O BOM VELHINHO
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br




                Mais um Natal. É sempre a mesma história. Bom velhinho p’rá cá, bom velhinho p’rá lá... Apesar de compreensível a tradição de tamanha deferência, dito costume merece algumas considerações. Quem é, afinal, o tal do velhinho senão aquele ou aquela que, ainda ontem, ralhávamos, criticávamos, quando não desprezávamos? Terrível mania que temos em engrandecer quem está distante e diminuir quem se queda ao nosso lado. Quem é o bom velhinho senão nosso pai, mãe, irmão, irmã, companheiro ou esposa? O polo norte está bem mais perto do que imaginamos, logo ali. As renas, a puxarem o trenó, surgem na mesma medida que nos permitimos sonhar. Presentes, temo-los para todos. Basta disposição para partilha. Quanto mais distribuímos amor, mais o temos. Abraços, beijos, palavras doces então... Uma mesa farta de delícias, daquelas que jamais enfaram ou terminam no fundo de uma latrina. Pode haver melhor sorriso do que aquele que nos quer bem e de quem se deixa amar? Natal é momento de “reunir”, o que dá ideia de “unir de novo” e, para fazê-lo, pressupõe-se laços anteriores. Laços, quem sabe, fragilizados pela infidelidade, pela mentira, pelo excesso de trabalho e dita falta de tempo, pelo não dito, pela desconfiança, pelo materialismo exacerbado... Nada que o perdão não seja capaz de dar um jeitinho. Afinal, ele traz consigo o bálsamo que cura a alma, tanto de quem perdoa como de quem se sente, verdadeiramente, perdoado.  O saco do bom velhinho pode ser a reinvenção da caixa de Pandora. Nele, em abundância, se encontra toda sorte de dádivas e valores, prontas para serem liberalmente distribuídas, sem qualquer espécie de avareza. Como pagamento, nada que o dinheiro, a fama ou os holofotes desta Babel de pés de barro possam pagar. Não há, na verdade, contraprestação. A bondade, a longanimidade, o amor, a paz e tantos outros frutos do espírito dispensam – não que os desprezem – retorno ou reciprocidade. Daí ser eterno e incondicional o sorriso do bom velhinho. Sorrir lhe faz bem. Amar lhe faz bem. Perdoar lhe faz bem. Bom Natal e não deixe de dar um abraço em quem você ama! 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A CABANA


A CABANA
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br





                Encomendara ao pintor desconhecido, daqueles que batem de porta em porta oferecendo seus trabalhos, uma tela tendo como temática uma cabana. Só se dera por conta do equívoco quando da entrega da encomenda. Decepção total. Não que a pintura, por si, deixasse a desejar quanto à estética, cuidado com os traços ou jogo de cores. Até que era bonita. Porém, em nada correspondia à expectativa. Cada um tem sua própria cabana. Esta é personalíssima, única, construída – sob medida – conforme a alma de cada um. A cabana dela era simples, a tal modo a se confundir com o entorno. Uma espécie de mimetismo natural, onde a morada aparecia como uma espécie de prolongamento da mata, dos galhos da figueira, do braço de rio. Uma cabana acolhedora, com as poucas paredes tomadas de cestos, arcos, pássaros perfeitamente esculpidos na madeira. No centro, a fogueira permanentemente acesa a exalar o inconfundível cheiro da lenha. Enquanto esta ia sendo consumida lentamente pelo filete de chama multicolorido a dançar de um lado para outro, sobre a chapa do fogão de barro ficava a cozer algumas batatas postas de véspera. A cabana dela desconhecia o frio. Acolhedora feito o ventre, ali dentro todo forasteiro era bem-vindo. Como pagamento, só o espírito desarmado e o sorriso largo. Afinal, pode haver maior riqueza do que uma boa companhia? Lá fora, o coral de sapos-martelo, grilos, lobos-guará e uma infinidade de seres da floresta. A iluminá-los, o pisca-pisca dos vagalumes e a romântica claridade da lua. No interior da cabana, a bebida cuidadosamente preparada e, por vezes, dividida. Bom mesmo era sorvê-la no grupo de amigos, com a taça passando de mão em mão, fazendo lembrar o verdadeiro sentido da ceia: a partilha. Contudo, mesmo quando sozinha na cabana, jamais se sentira solitária. O minuano a soprar no inverno ou o ar quente a prenunciar a chuva traziam consigo uma indescritível sensação de paz. As forças da natureza, ali eram bem quistas. Não as temia. Ao contrário, parecia confabular com elas. A cabana era seu porto seguro. Estava presa a ela. Ainda pequena, já a imaginava. Comum era vê-la rabiscar no caderninho os traços do lugar que a acompanharia por toda vida. Um espaço de descanso, meditação, tomada de decisões. Ela e a cabana se confundiam numa relação umbilical. Ninguém melhor do que a cabana para conhecê-la. Segredos, medos, projetos... Cumplicidade total, irrestrita, fiel. Tamanho significado, de fato, só poderia caber no coração, jamais num pedaço de papel. Quanto ao pintor desconhecido, seguisse talvez a vender por aí suas telas. Clientes, quem sabe, destituídos de uma cabana que pudessem chamar de sua. 

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O EXAME


O EXAME
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br




                Seria a primeira vez, e tomara que última, que passaria por aquela situação, todo aquele constrangimento. Histórias não faltavam, de tal forma que o sofrimento só aumentava. Sem falar, é claro, nas piadinhas e indiretas fazendo alargar, ainda mais, a ferida. Nos últimos quinze dias, só pensava naquilo. Algo lhe dizia que o exame era como que o divisor de águas da própria vida. Antes e depois. Só em pensar no tal do dedo, arrepiava. Não fosse macho, desandaria a chorar. Procurara na lista de urologistas um nome que pudesse, quem sabe, indicar algumas características do sujeito. A primeira estratégia era fácil, eliminar as doutoras. Só de imaginar de ficar de quatro para uma mulher... Ora bolas, alguma dignidade ainda lhe restava. Excluídas as do sexo oposto, a tarefa de escolher o médico “certo”, do seu “tamanho”, ia se tornando mais complicada e arriscada. Qualquer vacilo, estaria em maus lençóis. Passava e repassava nome a nome na lista dos médicos conveniados. Cuidado parecido com o que tinha na escolha dos números da mega-sena. Torcia para que na escolha do dito cujo tivesse mais sorte, do contrário estaria frito. Eram muitos nomes. Quais os critérios a serem usados? Pela antiguidade do CRM? Arriscado, vai que pegasse um médico com técnicas ultrapassadas, querendo fazer o troço pegar no tranco, sem nada de diálogo ou preliminares? Quem sabe, ainda, um velho míope ou com mal de Parkinson... Já pensou, aquela tremedeira toda depois de iniciado o procedimento? Por outro lado, os recém-formados também eram perigosos. Inexperiência, falta de prática ou coisa que o valha. Pior, um gurizote com aquele sorriso no canto da boca a desdenhar da diferença de idade em relação ao paciente. Definitivamente não! Nem oito, nem oitenta. A hora pedia equilíbrio, ponderação. Meia idade, portanto. Qual? Merda, o que poderia ser considerado meia idade? Nunca pensara o quanto era difícil escolher um médico. Chutou: quarenta e cinco! Alguma vez na vida teria de acertar um número que fosse. Saudades do Padre Nácio, antigo pároco, astrólogo e numerólogo, que conhecera nos tempos de colégio. Escolhida a idade, o próximo passo era o nome. Todos os que terminassem ou pudessem receber uma flexão em “ão”, por exemplo, eram automaticamente eliminados. Paulo, Roberto, Marcos, Pedro... Nem pensar. Não lhe enganavam. Até podia ouvir a voz da consciência – ou do órgão prestes a ser invadido – dizendo: “Paulão, Robertão, Marcão, Pedrão...”. Eram nomes fortes demais para seu gosto. Preferia nomes mais suaves, tipo assim... Leopoldo, Décio, Juvenal. Nomes que não admitissem aumentativos. O que era uma lista enorme, foi se reduzindo. Agora, não passava duns trezentos ou quatrocentos nomes. A próxima peneira era a do sobrenome. Os de origem alemã, italiana, russa, polonesa foram ficando pelo caminho. Muito rudes. Além de serem dados ao vinho, chope, vodka, salame e polenta. Não! Precisava, isto sim, era de alguém mais “zen”, alternativo, leve. Quem sabe alguém capaz de fazer o tão temido toque por meio do espaço, sem o auxílio das mãos, impulsionado pela energia do cosmos. De repente, um insight. Rapidamente procurou por Allan Kardec, Chico Xavier, Nostradamus... Sem sucesso. O negócio era seguir a busca entre nomes comuns. Concentração total. Sequer piscava. Foi afunilando, afunilando, afunilando, até que chegou ao nome de um urologista de nome oriental: Fuji Miinho. Tudo parecia conspirar a seu favor. Finalmente! Homem, meia idade – ao menos é o que parecia indicar o CRM –, oriental e, para coroar, aquele nome tão delicado. Até parecia já ver o sujeito. Um japonesinho de um metro e sessenta, mãos pequenas, cabelinho preto escorrido sobre o rostinho delicado. O médico de seus sonhos. Batata. Não tinha erro, era ligar e marcar. Dito e feito, na mesma hora pegou o telefone e agendara a consulta para o dia seguinte. Incrível. Tirara a sorte grande! Soubera de gente que levara quinze, trinta, sessenta dias para conseguir uma consulta. Dia seguinte! Mal podia acreditar. À noite, optara pela castidade, tomara um banho demorado, usara o sabonete não sei quantas vezes na região a ser examinada. Afinal, tinha que fazer sua parte, dar sua cota de sacrifício. Dormira como uma criança naquela noite. Levantara cedo, tomara mais um banho para garantir e até fizera uso de talco infantil para, digamos assim, facilitar as coisas para o senhor, como era mesmo o nome?,  Fuji Miinho... O local em nada parecia indicar a existência de uma clínica. Tocara a campainha. Um sujeito enorme, quase dois metros de altura, com a cara tomada de sardas e um par de olhos levemente puxados – resquício de uma longínqua herança oriental, quando da separação entre os continentes –, com os braços que mais faziam lembrar duas toras de madeira, com os dedos... Ao reparar nos dedos do desgraçado, um frio percorreu-lhe toda espinha, de alto a baixo. Eram descomunais. Pareciam destroncados, tamanho eram as juntas. Não podia ser... Já não atinava no que aquele brutamontes perguntava. Suava frio. O corpo inteiro tremia. O jaleco, um tanto que amarelado, não deixava dúvidas. Ali, feito a inscrição na lápide do defunto, restava estampado, apenas o sobrenome do sujeito: Miinho. Melhor, Dr. Miinho.



quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

A BALA


A BALA
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br



                O Natal se aproxima. Mais um. Existem motivos para comemorar? Para muitos sim, por vezes embasbacados pelas lantejoulas do mercado. Contudo, para um significativo número de famílias, a data só faz aumentar a dor, a tristeza, a saudade, a decepção e a profunda sensação de impunidade. Quisera existissem balas “perdidas”. Para quem? Não para o pai, para a mãe, para o filho ou para o irmão... Bala certeira isto sim, capaz de ceifar a vida e a esperança. Poderoso e funesto calibre a rasgar a alma dos entes que ficam. Dor incurável, indescritível, irrecuperável. Sofrimento que a incapacidade, omissão e letargia do Estado só faz aumentar. Ironicamente, a data traz consigo o indulto natalino. Perdão para quem? A quem caberia mesmo “perdoar”? Indulto que revolta e faz sangrar a ferida de quem é vítima. O mesmo Estado que contribui – com sua fragilidade institucional e permissividade jurídica – para a violência, é o Estado que “perdoa”. Baseado em quê? Alega critérios que, é sabido, são desencontrados e nada convincentes. Bandidos e criminosos de toda sorte, de roldão, ganham as ruas. Voltam, quase sempre, a delinquir. Ao Estado, resta o escárnio e a merecida imagem de fraco. O gigantismo e a obesidade – alimentados pela extorsão tributária institucionalizada sobre o contribuinte – não se travestem em força. Ao contrário. Feito espantalho, o ente público se põe imóvel, ao sabor do vento. Não por acaso, feito corvos, magistrados enfiados em suas vestes escuras, não apenas comem o milho, como o estocam em quantidade, enquanto os pobres mortais, hipnotizados pela ideia de um Eldorado inexistente, se contorcem famintos em meio ao estrume da saúde, (in)segurança e ensino precárias. Aos corvos, juntam-se os abutres – classe política acostumada à carniça resultante das partilhas e jogos de interesse –, e outras aves de rapina. Espreitam o ambiente, quase sempre favorável, à espera do melhor momento para encherem as cuecas, as meias e algibeiras. Ao que parece, a bala que mata o inocente não os assusta. Vivem noutro mundo, o dos carros blindados e jatos particulares. Têm o corpo são, apesar de toda nojeira que representam. Desconhecem filas. Quanto às fichas, só conhecem as da jogatina nos paraísos fiscais, pagas com dinheiro público. A bala, ao que parece, é seletiva. Mata trabalhadores, pobres, desabrigados, velhos, jovens, mulheres... Pudesse, democratizaria a bala. Estenderia seu poder de fogo, também, aos bem “apessoados”, togados e engravatados. Já que se auto intitulam “do povo”, nada mais coerente que sofrerem das mesmas chagas. Talvez, aí sim, o país mude. Quem sabe, então, tenhamos um bom motivo para comemorarmos o Natal.


terça-feira, 10 de dezembro de 2013

DEPOIS DOS QUARENTA


DEPOIS DOS QUARENTA
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br



                Mais uma primavera. Passada a barreira dos quarenta, a gente meio que se perde na idade. Acho que são quarenta e cinco. Sou de sessenta e oito. Tirem suas próprias conclusões. Sabem como é, a idade avança de maneira inversamente proporcional à capacidade da memória em gravar datas, nomes, trajetos... Há exceções, claro. Não sou uma delas. Dizem que me encontro na “idade do lobo”. Tolice. Dele, não tenho a astúcia, a destreza, a capacidade de caça... Por que então a analogia? Talvez, na melhor das hipóteses, possa me equiparar a um lobo solitário, faminto, capenga e sem dentes. Para piorar, com o paladar e olfato comprometidos pela idade. Um lobo a causar mais dó do que medo. Mais asco do que admiração. Lobo, só de nome. É assim, neste estado, que cheguei aos quarenta e cinco (?). Mais para lá do que para cá. A luz a chamar-me no final do túnel, só não a vejo por conta da miopia. Para meu consolo, inúmeras têm sido as manifestações de carinho pela passagem de meu aniversário. Parentes, amigos, colegas, ex-alunos... Preferível hoje que depois. Amanhã, quem sabe, serei pouco mais do que uma lembrança, ainda que boa, entre tantas outras. Somos, no fundo, “substituíveis”, pois efêmeros e transitórios. Daí ser vã toda arrogância e prepotência. Corre-se o risco de garantirmos sequer a boa lembrança a nosso respeito. Nossa casa é um bom termômetro, talvez o melhor. Como minha esposa e meus filhos de mim lembrarão ali adiante, depois de passar o fosso que nos separa do além? Espero ter semeado e seguir semeando – até quando? – coisas boas. Por vezes, não tenho dúvidas, vacilo enquanto pai e companheiro. Equivoco-me, ainda, enquanto professor, amigo, colega de trabalho. Ainda assim, ao que parece, toleram-me. Tamanha paciência e condescendência frente às minhas fraquezas, só faz crescer minha admiração pelo ser humano. Como cobrar deste mais do que eu mesmo sou capaz de dar?  Como projetar nele o que jamais fui, sem deixar de ser coerente ou verdadeiro? Por isso, ao chegar aos quarenta e tantos anos, pouco tenho a reclamar. Devo, isto sim, é agradecer pelas imensuráveis dádivas recebidas, a começar pelos meus pais, irmãos, esposa, filhos, amigos, ex-alunos, colegas... Miríades e miríades de crianças, jovens, homens e mulheres de todas as etnias, crenças e idades que, ao passarem pela minha vida, mesmo que de maneira rápida e aparentemente discreta, deixaram marcas. Sou, em parte, reflexo de cada um e de cada uma. Verdadeiro amálgama, inegável dialética forjadora deste lobo capenga e sem dentes, porém feliz! Muito obrigado pelas mensagens de carinho pela passagem do meu aniversário.