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sexta-feira, 9 de agosto de 2013

OS VÁRIOS TONS DA MORTE


OS VÁRIOS TONS DA MORTE
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira


                Trazia ainda na lembrança o cadáver a descansar no ataúde. Braços junto ao corpo, as mãos cruzadas sobre o peito, o terno impecável, o silêncio entrecortado por alguns sussurros misturados ao choro aqui e acolá. A boca a borbulhar, o algodão enfiado nas narinas. Tinha lá seus dez ou onze anos. Talvez mais, talvez menos. Ele, não o defunto. Este, ao contrário, era um homem passado dos quarenta. Motorista de ônibus. Segundo diziam, teria sido acometido de um infarto fulminante. Mal tivera tempo de parar o coletivo e pronto! Tudo acabado. Deixara um guri de tenra idade. A viúva parecia fora de si com aquele olhar perdido a mirar não sei o quê. O velório se dava no interior da pequena Assembleia de Deus. Naquela época era comum, assim como o acento agudo na denominação do templo. Era a primeira vez que tinha visto um morto assim, tão de perto. Misto de curiosidade, medo e nojo. Não conseguia compreender o porquê do algodão no nariz e nem tampouco do lenço a cobrir, vez por outra, o semblante pálido do sujeito. Diferentemente da maioria, sequer cogitava tocar naquele corpo. Deveria chorar? Até que tentara. Imaginava cenas trágicas envolvendo algum ente querido como forma de impulsionar as lágrimas a jorrarem. Nada. Nenhuma gota. Não queria ser tomado por insensível, mas fazer o quê? Mal conhecia o falecido. Não muito distante daquele tempo, antes ou depois – triste memória esta que me trai –, tinha acompanhado, meio que de longe, outro velório, o do velho Balbino, tio do Tonico, seu pai. Era um ancião, coração enorme, jamais largava o pito e a bombacha larga. A casa era simples, de madeira, com a patente disposta na parte dos fundos. Parecia ainda ouvir o zumbido das varejeiras cruzando de um lado para outro, ziguezagueando em volta das fezes misturadas à urina e uma infinidade de papel. Como se fosse hoje, lembrava do receio que tinha de ser espiado entre as frestas da “casinha”. Pior do que aquela sensação, só a aspereza do jornal ou do papel de enrolar pão que fazia o vivente, menos acostumado à rudeza do interior, pensar duas vezes antes de arriar as calças. Funeral em casa, na sala. Colocado sobre dois bancos, dispostos nas extremidades, o caixão parecia flutuar no meio da peça contígua à cozinha. Ele, gurizote ainda, preferia esta última. Distante do corpo petrificado e próximo ao simpático conjunto formado por uma mesa e algumas cadeiras com estrado de vime, onde repousava um pão de quilo e um pote de “Mu-Mu”. Não muito longe, um relógio em forma de galinha. Tia Mercedes, a viúva, apesar da dor pela perda do companheiro, achava forças para acolher a cada um que chegava. Enquanto isso, passava de mão em mão o prato de bolinhos de chuva regados a café misturado à cevada. Ruim ao paladar do guri, acostumado com a vida urbana bem diferente daquela gente de Santa Maria do final dos anos setenta. Depois foi a vez do Vô Juca, da Vó Ina, dos Tios Nenê, Neno, Darci... À medida que os anos foram passando, a morte parecia se aproximar. Chegara a vez do Tonico. A eterna inimiga tornara-se, por fim, íntima. Passara a integrar a família. A morte é assim. Não pede passagem, nem tampouco licença. Invade. O que outrora era conhecida, porém distante, sentara à mesa, sem cerimônias. Indesejada, mas fazer o quê? A morte, feito aquele primo “mala”, come e bebe conosco, sem nada a acrescentar ou retribuir. Só castra. A partir de um certo ponto, quando já se sente dona de nossa casa, passa a dar as cartas. É autoritária, intransigente, arrogante, insensível, fria... Tudo parece girar em torno de seu umbigo. Mesmo odiada e mal quista, não há um só instante em que deixe de ser lembrada. Não negocia, tamanha sua autossuficiência. Pudera, seu poder despótico prevalece desde os tempos mais remotos. Fica à espreita do berço, da cama, do leito de hospital, da curva na estrada, da orla do mar, das entradas de cinemas, boates e danceterias. Pacientemente, aguarda o momento de dar o bote fatal. Fica a contar cada gota de soro ou de sangue, batidas cardíacas e movimentos torácicos, até a expiração final. Apagam-se as luzes. Ao fechar das cortinas, o que vem depois?  Ironicamente, só ela, a morte, é capaz de dizer!

terça-feira, 6 de agosto de 2013

PAI


PAI
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br



                Domingo próximo, dia onze de agosto. Como tantas outras, uma ótima oportunidade de fazer um afago no teu pai. Dizer-lhe o quanto é importante, inflar seu ego com elogios, mesmo que exagerados. Professar e confessar teu amor, mesmo que óbvio, por ele. Envolvê-lo num forte e interminável abraço. Sentir seu cheiro, acariciar sua face e dividir com ele o tempo aparentemente eterno, tempo que ali adiante, quiçá, se transformará em saudade. Pedir que conte uma história ou mesmo uma daquelas piadas que só ele ri, pois a graça das mesmas reside é no contato dos corpos, na troca de olhares, no sorriso de quem narra e de quem ouve. Mais do que as palavras, o que resistirá ao tempo é a lembrança do encontro, o jeito inconfundível do pai dizer as coisas. Momento de gratidão por ser ele, teu pai, mais do que um provedor, mas também teu herói e guardião. Agradecer-lhe pela vida, alimento, segurança, lazer, abrigo... Pelas noites mal dormidas em face das tuas dores e pesadelos noturnos. Desculpar-te pelas lágrimas, por vezes sorrateiras, que provocaste. Submeter-te ao suave e amoroso jugo paterno, como sinal não de fraqueza, mas de reconhecimento e aceitação de um nobre mandamento bíblico. Expor-lhe e comungar com ele teus sonhos, mas também teus medos, anseios e, por que não, alguns de teus segredos. Fazer memória da infância, tua e dele, nascendo daí um oceano de boas gargalhadas. Ao fundo, o ritmo do coração a palpitar, bombeando sonhos e juras de amor eterno. Dia dos Pais. Data para presentear? Também, mesmo que uma “lembrancinha” em forma de cueca, lenço, gravata, loção... Grandes ou pequenos, caros ou baratos, úteis ou não, artesanais ou “sonhos de consumo”, no fundo o que conta é a oportunidade de estar junto, de calar na alma a singularidade do encontro, onde abraços e beijos, assim como as palavras de carinho, têm valor imensurável. Quanto aos pais que se foram, como o meu, fica a profunda e indescritível saudade. Quantas coisas poderia ter-lhe dito e não o fiz? Quantas oportunidades perdidas de traduzir meu amor e gratidão por ele através de gestos e atitudes? Poderia ter amado mais... Poderia... Sorte tua que podes conjugar o verbo noutro tempo. Aproveitas, portanto. Bem-aventurado és pela oportunidade de não deixares passar em branco o dia de hoje. Seja cada momento, filho(a), dedicado a teu PAI. 

ESQUECI


ESQUECI
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br


                Perdão! Uma, entre tantas outras virtudes de um homem santo. Quatro de agosto foi o Dia do Padre. Como poderia ter esquecido? Imperdoável, não fosse a misericórdia divina e a condescendência de meu querido Diretor, Padre José Luiz, estaria condenado a ferver no lago de fogo e enxofre. Espero mitigar tamanha falha com este singelo, porém sincero, texto. Coincidência ou não, o Dia do Padre é comemorado apenas alguns dias após a vinda do Papa Francisco ao Brasil. Estadia esta emblemática. O Sumo Pontífice pautou sua fala, principalmente, nas questões sociais, descortinando importantes verdades bíblicas que, ao que parece, ficaram à beira da estrada do mundo cada vez mais globalizado. Lembrou, por exemplo, que o capital não deve ser um fim em si mesmo, nem tampouco deve estar a serviço de uma ínfima minoria, mas deve, isto sim, promover a justiça social e a diminuição das desigualdades. O exercício do sacerdócio, neste mundo cada vez mais laico e avesso à fé, se reveste de indelével importância. Verdadeiro farol em meio ao encapelado mar. Espécie de norte frente ao relativismo exacerbado que a muitos confunde. Vão-se não apenas as certezas de outrora, mas os caros valores cultivados ao longo do tempo. Num contexto que espezinha o amor, a vida, a honra, a família e a ética, ser sacerdote é como que nadar contra a maré. É, por vezes, opor-se ao “politicamente correto” e assumir posicionamentos pouco simpáticos ao modismo midiático. O sacerdócio, não raras vezes, pressupõe abrir mão da família, do lazer, da privacidade e do conforto. Os parcos recursos para a grande Obra, comumente, contrastam com uma demanda cada vez mais crescente. Falta não apenas pão, mas espiritualidade. Viceja a apostasia. Mais do que nunca, urge um sacerdócio capaz de fazer a diferença, comprometido com a sorte alheia, solidário aos que têm dor no corpo e na alma. O pastor é o sal numa terra cada vez mais insossa. Portanto, justa é a homenagem aos homens que fazem da batina sua armadura de fé. Parabéns, de forma muito especial, aos Padres da Rede de Escolas São Francisco.  Ao homenageá-los, o faço a todos os sacerdotes.


O SUMIÇO DA PASTA


O SUMIÇO DA PASTA
Gilvan
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br


                Verdadeiro enigma. Não se sabe como, o fato é que a pasta que até então descansava sobre a “área de trabalho” do computador sumira. O pavor tomou conta do lugar, menos pelos documentos perdidos do que pelo temor quando da chegada da Bruxa. Já não bastava todo o estresse da mudança de casa, das noites mal dormidas por causa das intermináveis insônias, das horas perdidas em salas de pronto-atendimento por causa dos netinhos... Agora mais esta.  Nem as simpáticas propagandas veiculadas na RBS seriam capazes de aplacar a fúria da chefa. Foi um deus-nos-acuda na sala. A Mulher-Gato até esquecera a dor no joelho. Corria de um lado para outro, fazendo inveja ao mais rápido velocista. A Doidinha então, endoidecera de vez! Feito barata tonta, seguia daqui para lá e de lá para cá, transtornada. O Lanterna Vermelha, ao que parece, não apenas recuperara a visão do olho esquerdo – quase perdida depois de uma longa inflamação da conjuntiva ocular –, como ampliara a capacidade visual, metendo inveja no Clark Kent. Não tinha canto que não olhasse na máquina. Meticulosa e cirurgicamente mexia em cada um daqueles intermináveis arquivos e pastas. Tudo em vão. Nada de aparecer a maldita pasta. Praga de sogra, sabotagem, coisa do capeta... Explicações não faltavam para o sumiço. Enquanto isso, os ponteiros do relógio seguiam avançando na mais absoluta indiferença, como a zombar daqueles pobres mortais. A Doidinha, num de seus raros espasmos de lucidez, esboçara uma saída, apesar de meramente protelatória: atrasar, ao máximo, o retorno da Bruxa e, com isso, ganhar mais alguns minutos até que se achasse a pasta. Ligar para ela? Dizer o quê? Ora, de boba a Bruxa não tinha nada. Ao que tudo indica, tinha lá seus informantes. Noutros tempos eram o espelho, a bola de cristal e as cartas. Hoje, eram os incontáveis “amigos” do facebook. Verdadeira e poderosa rede de espionagem. Bastava meia dúzia de toques e pronto! Tudo e todos estavam lá. Nome (civil ou “social”), endereço, (des)ocupação, idade, sexo (ou falta dele...), preferências, fotos (muitas delas comprometedoras), rotina, etecetera e tal. Os arapongas eram coisa do passado, assim como a velha vassoura da Bruxa. Ambos caíram em desuso, o que não deixava de ser uma pena, especialmente para os românticos, ébrios e boêmios. O mundo já não era o mesmo. Devaneios à parte, o fato é que o grupo precisava resolver o problema da pasta ou, melhor, da falta dela. Como ia dizendo, a Doidinha tivera a ideia de atrasar o retorno da Bruxa. Forjar uma denúncia acerca de uma creche, inventar uma palestra em algum município (de preferência, bem distante) ou, ainda, propagar a falsa notícia de uma paralização do transporte coletivo. Qualquer coisa que garantisse mais tempo até que a pasta voltasse a aparecer. A teoria parecia simples. Assim como tudo o que sobe desce, o que some reaparece. Certo? Errado. Ao menos era o que se desprendia do relógio que não cessava de correr. A demora na solução do misterioso sumiço da pasta só fazia aumentar o pavor do trio. Ante o desespero, encheu-se a cuia com folha de laranjeira, melissa e erva doce, tudo misturado à erva-mate, como forma de mitigar as prováveis consequências do furor de quem estava por chegar. Ligou-se para o homem das cucas e para a índia que vendia pães, preparando-se um verdadeiro banquete de “boas vindas” à Bruxa. Só por precaução, a Mulher-Gato acionou, também, a SAMU e o Corpo de Bombeiros. Vá que a chefa não se deixasse seduzir pelos manjares... Coube ao Lanterna Vermelha escrever o testamento, dele e das colegas. Exceto o da Mulher-Gato, proprietária de um Cerato e de alguns imóveis no metro quadrado mais caro de Cachoeirinha City, bastou um pedaço de papel de pão para arrolar os parcos bens do grupo. Não demorou muito, a porta da sala se abriu e por ela adentrou a Bruxa. Como de praxe, parecia elétrica. Fazia tudo ao mesmo tempo. Comia, bebia, lia, falava, remexia nos papéis sobre a mesa. O que para outros era impensável, para ela era trivial. Não demorou, veio a temida pergunta: “quem salvou a pasta?”. O grupo se entreolhou. A Doidinha – não fosse o pedido de calma do Lanterna Vermelha – quase se jogou pela janela do prédio. A Mulher-Gato, por sua vez, sorveu a pimenta trazida do México, pensando ser a bomba do mate. Quando tudo parecia estar perdido, o alívio. “Achei, não precisa mais”, anunciou a Bruxa. Não é que a pasta estava lá, na área de trabalho do computador, como se nada tivesse acontecido. Ninguém entendeu nada. Inexplicável. Tudo parecia ter voltado ao normal, ao menos até o próximo mistério...