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terça-feira, 30 de julho de 2013

O HOMEM QUE NINGUÉM VIA


O HOMEM QUE NINGUÉM VIA
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br



                Passeava pelo pátio da escola. Alguns minutos do recreio já tinham se ido. A gurizada formava grupos aqui e acolá. Alguns mais numerosos, outros não mais do que duplas. Por mais que insistisse – Bom dia! Bom dia! Tudo bem? Tudo bem? – ninguém respondia. Só silêncio do outro lado. Tantos anos dedicados ao lugar e o que recebia agora era tão-somente a indiferença. Sentia-se invisível. Todos pareciam ignorá-lo. Não tivesse recém retornado de um período de descanso, juraria ser coisa da cabeça, produto do estresse. Contudo, estava bem e gozando de plena consciência. Enquanto andava, com os braços escondidos por detrás do próprio corpo, alguns guris cruzavam pelo homem, numa espécie de frenesi de estrelas cadentes. É como se não estivesse ali. No fundo, até que desejara que um daqueles piás lhe esbarrasse, dando a certeza de que tudo aquilo era real. Uma espécie de belisco, capaz de vencer o torpor que, talvez inconscientemente, tivesse-lhe lançado naquele sentimento de modorra crescente. Estaria ali? Começava a duvidar da própria existência, não fosse o desconforto gástrico que o incomodava já há alguns dias. As conversas cruzavam daqui para lá e de lá para acolá. Impossível decifrar aquele emaranhado de vozes e mescla de assuntos. Vez por outra, uma que outra palavra marota fugia ao círculo e vinha soprar junto aos ouvidos do homem. Solta, mais parecia criança sozinha. Era no grupo, com outras palavras e gestos permeados dos mais diversos sentimentos, que encontrava sua razão de ser. Ao que parecia, até elas, as palavras, passavam de largo do pobre homem. Rejeitado. Quase que execrado, mesmo que tacitamente. Sentia na pele o ostracismo que, ainda ontem, discorria em suas aulas. É bem verdade, que exclusão duma outra espécie. Mais perversa. Profundamente dolorosa. Sentia-se estrangeiro em sua própria terra. Pior, um párea destituído de tudo, inclusive do próprio invólucro da alma. Invisibilidade tamanha a ponto de aniquilar o fio condutor da humanidade: o diálogo com o outro. Passara a sentir saudade do confronto, do embate mesmo que áspero. Onde estariam as diferenças? Naquele momento, o consenso soava funesto e sombrio. Ansiava pela voz adversa, tábua de salvação para a profunda tristeza que o assolava. Gritasse, talvez o escutassem. Talvez o vissem. Aspirava por nem que fosse um par de olhos que o resgatasse daquele insuportável anonimato. Olhos da alma, prontos para saudá-lo, acolhê-lo, ressignificá-lo. Ao fundo, mesmo que tímido, o sinal que dera fim ao recreio se mostrara incapaz de pôr fim, também, ao niilismo daquele homem.


quinta-feira, 18 de julho de 2013

O PIJAMA


O PIJAMA
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br



                Detestava aquele pijama. Não lhe saía da cabeça a noite em que o maridão dissera ao ouvido dela: “foi a melhor noite de minha vida”. Maravilha, não fosse o fato dele ter chegado ao ápice após eróticas esfregas no pijama da companheira. Só no pijama! Ela, por sua vez, ficou a ver navios... Até que deu algumas indiretas ao infeliz. Sem sucesso. Demorou para “entender” os apelos da esposa. Quanto a “atender”, parecia fora de questão. A idade talvez ou, quem sabe, os longos anos de convivência militavam contra o pobre varão. Ele, até que tentara reacender a chama, todavia esta se esvaíra em meio ao último espasmo de prazer. O monólogo sexual não fora proposital. Podia jurar que a mulher estava acompanhando todo aquele frenesi corpóreo. Mal sabia ele que, no quebrar das ondas, quando se ouve aquele “chuááááá”, era um lobo solitário. Quanto à mulher, mais lembrava uma andarilha em meio ao deserto. Completamente seca. Árida e indignada ante o aparente egoísmo do marido. Diante das explicações do sujeito, a revolta só aumentava. Preterida pelo pijama. Ora essa! Não bastasse, a infeliz exclamação do parceiro: “foi a melhor noite...”. Desgraçado. Insensível. Grosso. Por mais extensa que fosse a lista de impropérios, era um nada diante da indisfarçável raiva da mulher. A vontade que tinha, por mais que se desculpasse o homem, era aleijá-lo. Nos momentos mais obscuros do ódio, a mulher parecia ver o marido transformado em eunuco, enquanto ela, por sua vez, estaria rodeada de meia dúzia de gladiadores “saradões”, recém-chegados da longa batalha, com as enormes espadas em riste. Tanto quanto radical, foi efêmera a vingança imaginativa da esposa. Seis homens mijando fora do vaso, cheirando a cerveja, soltando flatulências mal cheirosas, bagunçando o orçamento doméstico... Não, nem pensar. Melhor só um. Mesmo que fosse aquele infeliz. Não bastasse o infortúnio causado pelo traste, teria ainda que lavar o maldito pijama. O marido, ante o mal-estar causado, já não sabia o que dizer. Ampliara, de última hora, o rol de elogios: ninfeta, rainha, sereia. Diante da cara amarrada da esposa, apelara para o outro extremo: piranha, vagabunda, messalina... Nada, nem sinal de perdão. Pelo visto, a noite seria longa. Pior era ter de acordar e encarar a mulher nos olhos, enquanto lá fora, estendido no varal, estaria o pijama com aquele ar da mais pura satisfação.



quarta-feira, 17 de julho de 2013

SIMPLES ASSIM !


SIMPLES ASSIM!
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br

               
                Por que complicar o que é fácil? Eis aí flagrante retórica daqueles que se apoderaram[1] do Estado brasileiro. Por vezes, deveríamos pedir que nos belisquem[2], tamanho o mar de fantasias criado por marqueteiros muito bem pagos. O Brasil que nos vendem nas propagandas, nem de perto parece com aquele que conhecemos. “Anões” não faltam para contar a história. Assim como não faltam cuecas recheadas de dinheiro, vultosas aposentadorias compulsórias de magistrados corruptos, viagens particulares custeadas pelo dinheiro do contribuinte, malversação de recursos públicos, privilégios corporativistas legitimados por imorais planos de carreira, entre tantos outros tristes ingredientes que fazem deste país uma enorme e cara pocilga. Apesar de tamanhos e graves problemas, ao que parece, o Estado brasileiro – capitaneado por Brasília – já tem a solução. Simples assim! Como um passe de mágica. Para o caos na saúde pública (e privada também...), importa-se médicos. O resto é só “o resto”. Falta de leitos, precariedade física dos hospitais e postos de saúde, jornadas de trabalho desumanas e mal remuneradas dos profissionais da saúde, má gestão do erário público, lucro exorbitante de empresas que veem na saúde apenas uma máquina de fazer dinheiro... São apenas “detalhes”. Para o caos no ensino público, algumas outras soluções mágicas. Simples assim! Falta de escolas? Mete-se as crianças em containers. Universaliza-se o acesso à Educação Básica na mesma proporção em que se universaliza a mediocridade do saber. O resultado não poderia ser pior. Feito cão em torno do próprio rabo, fica o país a dar voltas em torno de problemas como a evasão, a repetência e a desvalorização do magistério[3]. Quanto às injustiças étnico-sociais criadas ao longo do tempo, o Estado brasileiro também achou a solução, através das famigeradas “políticas afirmativas”[4]. Simples assim! Enfia goela abaixo das universidades todos os que se declaram pobres, negros, pardos ou índios, e pronto! Quanto aos outros, são só os “outros”. No que tange à (in)segurança pública, não é diferente. Tudo tem solução. Converte-se, por exemplo, o dito regime semi-aberto  em “prisão domiciliar” e, adivinhem, resolvido o problema da superlotação dos presídios. Simples assim! Ah, sem falar nos indultos natalinos (onde o presunto somos nós...), na progressão de regime sem critérios, entre outras maravilhas jurídicas. “Garantismo”, há muito vem sendo sinônimo de absoluta, vergonhosa e perigosa impunidade. O Estado, contudo, segue no seu faz-de-conta. Quando o “berço esplêndido” se torna um tanto que incômodo e boa parte do “povo” ganha as ruas, o Poder Público logo apresenta a solução: plebiscito, referendo, Constituinte... Simples assim! Triste engodo. Já assistimos essa história. Plebiscito para escolha da forma de governo (República ou Monarquia), referendo para o desarmamento, Constituinte para mudança da Constituição... Melhoramos? Seguem as mazelas, a corrupção corrói a cada dia as estruturas do Estado, a violência fugiu ao controle, os serviços públicos estão aquém do irrisório e aceitável. Quem era lobo, segue lobo. Nós, a maioria dos contribuintes, seguimos feito cordeiros. Sendo tosquiados a não dar mais. Talvez estejamos exagerando, fazendo tempestade em copo d’água. Quiçá, a solução seja, de fato, simples: acabar de vez com o Estado. Simples assim!




[1] Alguns, através do voto é verdade...
[2] O Analista de Bagé optaria por um joelhaço no vivente (ver Luís Fernando Veríssimo).
[3] Muitos são os lugares neste país em que inexiste a qualificação mínima necessária para lecionar. Curiosamente, não se aventou a possibilidade de também importar professores de outros lugares... Pudera, com o que se paga... nem os cubanos topariam.
[4] Muitas de tais “políticas” têm se mostrado questionáveis, tanto do ponto de vista legal, quanto ético. As desigualdades sociais, econômicas e de qualquer outra natureza são complexas e, como tal, exigem soluções que passam, obrigatoriamente, pela refundação do Estado. Este último segue assentado no clientelismo, na confusão entre público e privado e na hegemonia do poder e do interesse do capital. 

terça-feira, 16 de julho de 2013

O OUTRO LADO DA COSTELA


O OUTRO LADO DA COSTELA
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br





                Quinze de julho. Dia do homem. Você sabia? Eu, sinceramente, não. O comércio, no afã desesperado de enfiar seus produtos goela abaixo, cria e reforça datas como a de hoje (ontem?). Ora, como se todos os dias não nos pertencessem. No princípio era o Verbo, lembra? Na Pré-história era o homem das cavernas. Durante a Antiguidade, quem eram os reis, faraós e profetas? Na Idade Média, eram os senhores feudais quem davam as cartas. A Modernidade foi marcada pelos mecenas, enquanto na Contemporaneidade somos nós, os homens, que seguimos à frente das grandes empresas, agremiações partidárias e clubes de futebol. Não fossemos nós, o que seria delas? Eva, sem Adão... Inimaginável. Corpo sem costela. Insustentável. Bambo, ao sabor do vento. São os homens o alicerce, o sustentáculo, o provedor. Daí não haver espaço para a dor, para o choro e para o sorriso fútil. Nossa insensibilidade foi tecida pelas agruras do tempo, pelas guerras travadas em campo aberto e junto às trincheiras. O ar sisudo, o forjamos ante a eterna ameaça do potencial concorrente. Traçamos um círculo imaginário em torno de nossa casa e de nossa família e, com unhas e dentes, afastamos tudo e todos que representem risco ao que julgamos ser nosso. Não admitimos fraqueza e condenamos a covardia. Quinze de julho, que nada. Somos senhores do tempo. Subjugamos o medo e afugentamos as forças etéreas ou terrenas, jamais demonstrando qualquer titubeio frente ao desconhecido. Somos faca na bota. Ainda mais para estas bandas do Sul, onde peão é peão e prenda é prenda, onde ximango e maragato não se misturam. Cabe a nós a última palavra, nem que seja para... aquiescer (minha mulher acabou de chegar neste momento!). O que nos torna especiais é a possibilidade de nos vermos em nossa “cara metade”. O que é nossa labuta perto das dores do parto? O tempo que aparentemente perdemos a espera da mulher amada, envolta em suas compreensíveis vaidades, em nada se compara com a longa espera gestacional. Mulheres guerreiras, valentes, multifuncionais. Não fossem vocês, estaríamos perdidos, incapazes que somos de cuidar para que o leite não se espraie pelo fogão, de enrolar as meias ou de achar as próprias cuecas. Somos tolos, isto sim. Morremos mais cedo, nos matamos mais fácil e nos corrompemos por quase nada. Ano após ano, geração após geração. Teimamos em não aprender com os erros do passado. Quebramos prefeituras e insistimos em discursos que pouco mais produzem do que cuspe e mau hálito. Pensando bem, ter um dia em alusão a nós já é muito. Quase um exagero. Quiçá, presente de uma mulher. Viva o nosso dia! Parabéns a todos os homens... 

quarta-feira, 10 de julho de 2013

A BRUXA


A BRUXA
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br


                O inverno mal iniciara e o frio já era intenso. O minuano diminuía ainda mais a sensação térmica naquela manhã. Cachoeirinha estava envolta pelas brumas. Apesar do adiantado da hora – passava das seis –, ainda era escuro. O rio, ou o que sobrara dele, exalava uma densa nuvem a esconder tudo a sua volta. A artéria principal da cidade metropolitana mais parecia aqueles fiozinhos tomados de pequenas lâmpadas, muito comuns em período natalino. Verdadeiro pisca-pisca das lanternas traseiras dos automóveis, enfileirados naquele lerdo movimento de arrancadas e freadas. No interior dos coletivos, vultos. Anônimos, espremidos feito gado. Prontos para o abatedouro, para a dureza da lida. Verdadeiras sardinhas em direção à enorme boca recheada de dentes dos tubarões. Lado a lado, carros particulares, luxuosos alguns, e ônibus lotados. Entre eles, em comum, os vidros embaçados pelo contato do ar quente saído daqueles corpos com o gélido ar que brotava do polo meridional. O barulho artificial saído dos motores afugentara, há muito, o canto do galo. Não fosse o Mato do Julho e o “Bosque”, teriam desaparecido todos os vestígios do tempo em que o lugar trazia os ares do interior. Lá, no Bosque, em meio à paisagem bucólica, diziam os mais antigos, vivia a Bruxa. Não eram poucos os que juravam, de pés juntos, tê-la visto. É bem verdade que as narrativas pouco tinham em comum, salvo um ou outro detalhe. Alguns afirmavam tê-la visto enfiada num longo vestido preto, coberto por uma capa escarlate. Outros, contudo, eram menos caricaturais. Descreviam a mulher como um ser belo, encantador, quase uma sereia a enfeitiçar os incautos. No lugar da vassoura, um ramalhete de flores multicoloridas e perfumadas. Muitas eram as versões envolvendo a origem, características e intenções da Bruxa do Bosque. A lenda mais aceita era a de que ela teria vindo das bandas do Passo de Torres. Nascida no interior, já teria muito cedo dado mostras de suas particularidades. Ainda pequena – naquela época o cabelo cacheado já a diferenciava –, diziam, teria demonstrado enorme interesse pelos segredos da floresta. Os sons, cheiros e movimentos que para a maioria dos mortais eram motivo de medo avassalador, para a menina soavam como inspiração. Era duvidar, lá estava ela a observar ervas aromáticas e pássaros exóticos. Ao que tudo indica, era inquisidora, curiosa e insistente. Enquanto a mãe não lhe explicasse a funcionalidade daqueles vegetais, não sossegava. Esta serve para quê? Aquela, e aquela outra? Absorta, prestava atenção a cada explicação. Os olhinhos brilhavam embalados pelas histórias que se seguiam. O poder curativo da natureza despertava na guria um misto de respeito e devoção. Passara a ver e se ver a partir do vento, da chuva e do fogo. Para ela, nada era por acaso. O que de início era desconfiança, com o tempo se tornou certeza. Segundo diziam muitos, a Bruxa nada tinha de má. Era como que uma extensão da “Grande Mãe”, uma parte da natureza ainda não coisificada pelos atropelos do mercado. Viam-na como manifestação positiva, fonte de boas vibrações e sinônimo de um bem-vindo animismo. A ideia de uma velha nariguda, verruguenta e sinistra passava de largo dos que viam a Bruxa com simpatia. Afugentavam, ainda, a imagem associada ao enorme caldeirão, cheio daquele líquido incandescente alimentado por insetos, anfíbios, répteis, morcegos, mexas de cabelo e pós de origem duvidosa. Para os defensores da Bruxa, ou de sua imagem, a pequena cidade perderia muito de seu romantismo, não fosse as histórias contadas. Verdadeiras ou não. O que é a verdade, senão aquilo em que se acredita? Valem pelo efeito que produzem. O cheiro do orvalho a embeber a pequena cidade parecia convidar os transeuntes a sonhar, mesmo que a contragosto acordados. Vez por outra, em meio ao clima leitoso do inverno, um vulto. Duvidasse, era ela, a Bruxa, a espreitar grandes e pequenos, homens e mulheres. Pura diversão, talvez. Serelepe e faceira. Como nos tempos de criança lá para as bandas do Passo de Torres. 

quinta-feira, 4 de julho de 2013

SISTEMA PARTIDÁRIO: ONDE ESTÁ MESMO O PROBLEMA?


SISTEMA PARTIDÁRIO: ONDE ESTÁ MESMO O PROBLEMA?
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br



                Simplista é tentar explicar a desconfiança em relação ao sistema partidário brasileiro a partir de apenas uma causa. Simplista e ingênuo. Simplista, ingênuo e irresponsável. Os motivos que têm levado uma incontável multidão à ojeriza em relação aos partidos políticos são inúmeros e complexos. A começar pela história deste país. Mais de trezentos anos de submissão à Coroa portuguesa, mais de meio século de modelo imperial, décadas de República Velha, mais de trinta anos de ditadura civil (Estado Novo) ou militar (1964-85)... O que sobra? Apenas um vintém de experiência democrática e quase nada de know-how político partidário. Ainda que democracia e sistema partidário não sejam sinônimos. No Império, mesmo no período mais sombrio, tínhamos partidos, ainda que sob denominações diversas. Na República Velha, onde vicejou o coronelismo e o cabresto, também as agremiações partidárias deram o ar da graça, em que pese a forte conotação regional das mesmas. Mesmo na Ditadura Militar, a partir de 1964, o famigerado bipartidarismo esteve presente. O segundo grande entrave para o fortalecimento e reconhecimento dos partidos políticos como canais de representatividade é a extensão territorial do Brasil. Há uma enorme distância não apenas física, mas sobretudo de interesses regionais. A pretensa unidade nacional, é sabido, não passa de mera construção teórica. Não fosse o idioma – e, mesmo assim, tomado de nuances – e alguns rompantes esporádicos em período de copa do mundo, juraríamos serem vários países, tamanho as idiossincrasias existentes. Alguém duvida ser o gaúcho mais admirador da própria bandeira do que a nacional? O hino rio-grandense, qualquer guri o tem na ponta da língua, ao contrário do “ouviram do Ipiranga...”. Tal complexidade, nascida do gigantismo físico do Brasil associada ao processo histórico que levou à formação cultural, política e econômica do país, por exemplo, obstaculiza a construção de uma plataforma político-partidária que seja válida para todos os estados e regiões. Os conchavos e alianças aqui aceitos não o são acolá. O que aparenta ser coerente lá não o é aqui. Assim, o descrédito dos partidos junto ao eleitor só aumenta. O que ainda ontem era pouco mais do que desconfiança, hoje é quase ódio. Tamanha aversão, apesar de compreensível, é perigosa. Ora, se por um lado é inegável a falência do histórico, atual e carcomido modelo político-partidário brasileiro, por outro não se pode negar a importância dos partidos políticos como instrumentos de representação dos mais diversos matizes sociais. O problema não está no partido em si, mas nas relações que, através dele, se estabelecem. As agremiações partidárias devem, primeiro, construir uma identidade clara que os caracterizem. Devem assumir posições inequívocas, sejam à “direita”, ao “centro” ou à “esquerda”. O mimetismo há muito adotado pelos partidos confunde o eleitor. O temor do insucesso quando dos pleitos tem feito deles uma “massa” disforme, opaca e insossa. Não se sabe quem é quem. A preocupação com o discurso “politicamente correto” tem ofuscado e aniquilado a essência do que venha a ser um partido político. Partidos lembram “partes”, onde uma difere da outra, pois do contrário não seriam partes, mas sim um “todo”. Este último, enquanto visão ideológica, inexiste numa verdadeira democracia. Acreditar e defender a “unidade” de pensamento cheira a ditadura, a fascismo, a totalitarismo. Portanto, nada mais natural e aceitável do que partidos que defendam o vermelho, o azul, o lilás ou o amarelo.  No Brasil, tal obviedade passa de largo. As bandeiras partidárias não passam de trapos coloridos. As siglas, por sua vez, pouco dizem. Mais parecem sopa de letrinhas. Letras que se prostituem, que se vendem, que negociam postos, secretarias e ministérios. Letras vazias. Frias. Escorregadias, tanto quanto contraditórias. Ontem discurso de “oposição”, hoje prática de “situação”. Qual é a saída? Não há receita que garanta sucesso na empreitada de reverter o preocupante contexto. Urge, entretanto uma profunda reflexão no que tange, por exemplo, à organização, fidelidade e ética partidárias, bem como ao financiamento de campanha. Outro desafio: como estabelecer um viés partidário capaz de levar em conta as, por vezes profundas, diferenças estaduais e regionais? Como conciliar o direito à livre associação e a coibição do surgimento de “partidos de aluguel”? Mister é que, também, se crie mecanismos voltados ao fortalecimento da identidade partidária, aproximando prática e estatuto da agremiação, restando clara sua opção ideológica, de modo a pôr fim no presente “estelionato eleitoral”, onde o eleitor acaba, quase sempre, comprando gato por lebre. 

quarta-feira, 3 de julho de 2013

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA


ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br



                Nada original o título, não é mesmo? Contudo, precisava de uma “entrada” à altura do nobre ato levado a cabo por um aluno do São Francisco. Quem? Pouco importa aqui. O que deve ser destacado é seu gesto. O rapazote, no auge da adolescência, estava conversando com alguns amigos numa banca de cachorro-quente quando não mais do que alguns metros adiante uma senhora, aparentemente cega, vinha caminhando em sua direção. A mulher parecia arrastar os pés. Andava lentamente, como que temerosa em esbarrar em alguém ou alguma coisa. Não trazia bengala. Tateava. Apesar dos cuidados, o acidente parecia inevitável. A questão era o quando aconteceria e qual a gravidade. A velha senhora vinha, ao que tudo indicava, driblando postes e lixeiras, assim como driblara – muito provavelmente – a própria vida. Sorte ou não, destino ou não, o fato é que sobrevivera e estava ali para contar a história. Qual seria mesmo sua história? Vinha ela pela calçada quando, de repente, esta afunilou cerceada pela parede lateral da lanchonete. Mudança abrupta que pegara a coitada de surpresa. Estava flagrantemente confusa. Atônita, talvez. Parecia perdida, sem saber ao certo o que fazer. Simplesmente freara. O aluno, enfiado em seu uniforme, não titubeou. Largou tudo, abandonou os amigos e saiu em direção à velha senhora com intuito de ajudá-la. Ofereceu-lhe o braço, ao qual a mulher prontamente aceitou. Feito banhista em apuros, quando diante da boia salvadora do guarda-vidas, a senhora agarrou-se ao aluno. Porto seguro. Impossível deixar de sorrir. Gratidão. Lembrava um filho grato quando diante de sua genitora. A diferença era que ele, o rapazote, não tinha nenhum laço consanguíneo, nenhum compromisso jurídico, nada que o vinculasse formalmente àquela mulher. Apenas e tão somente o sentimento ético do que seja “certo” ou “errado”. Nada demonstrava esperar em troca, sequer um “muito obrigado!”. Sem falar, é claro, que correra o risco de ser motivo de chacota entre seus pares. Que nada! Parecia por demais despreocupado com o que os “outros” haveriam de pensar. Valia, isso sim, sua consciência. A convicção de que agira justa e corretamente. Ficara a certeza, para quem – como eu – por ali passava, de que existe esperança. Feito fagulha sob o carvão, basta um sopro para avivá-la. O que ainda há pouco era escuro, enche-se de ardente vida. Por certo, a limitação visual daquela velha senhora se esvaíra ante o apoio do braço amigo. A gentileza, o cavalheirismo, a solidariedade, o compromisso com a sorte do outro são apenas algumas das pérolas a serem buscadas em meio às ostras, mesmo que hermeticamente fechadas, mesmo que enfiadas no mais íntimo dos oceanos. A pior cegueira não é a do tipo que assola pessoas como a velha senhora, mas aquela que atrofia as relações, fere de morte a ética e põe em risco a esperança. O pior cego, já diziam os antigos, é o que não quer enxergar!