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quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O PIOR CEGO


O PIOR CEGO
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br


                Ainda guri, já ouvia o velho ditado: “o pior cego é aquele que não quer enxergar”. Lá se vão mais de quarenta anos, porém reforço a convicção de que o dito popular segue valendo. Talvez, mais do que nunca. Por vezes, fica a sensação de que vivemos numa terra de “cegos”. Tem sido muito comum nos depararmos com pais tomados de uma cegueira senão total, quase que completa. Apesar do discurso recheado de uma aparente autoridade e ascendência sobre o filho, este último reina absoluto dentro de casa. É ele quem, de fato, dita as regras. Sua palavra soa como verdade, em que pese todos os indícios a denunciarem exatamente o contrário. As vontades e manias do guri – por vezes, quase um homem – prevalecem, sob o risco de a família entrar em “conflito”. Triste e perigoso engodo. A demora de tais pais em detectarem e enfrentarem a falta de limites do rebento, muito provavelmente redundará, isto sim, numa tragédia familiar. Prato cheio para a delinquência, uso e/ou tráfico de drogas, mentiras reiteradas, irresponsabilidade, falta de compromisso, preguiça doentia, entre tantos outros dissabores. A escola, por certo, paga caro pela omissão e condescendência dos pais “cegos”. Contudo, o maior preço a ser pago é pela própria família. Caberá a esta, afinal, conviver por muitos anos, décadas e mais décadas, com os “pesadelos” por ela mesma criados e alimentados. Pesadelos que fazem chorar e sofrer. Pesadelos que levam à morte física, mental e espiritual. Pesadelos que, quase sempre, extrapolam os limites da própria casa, respingando em muitas outras famílias, com ou sem grau de parentesco. Pesadelos que aniquilam com a ideia de “lar”, pois que a tranquilidade, o diálogo, o carinho, a estabilidade, a paz, a felicidade duradoura e, acreditem, até mesmo a esperança, cedem lugar à desconfiança, à mentira, ao pranto, à enfermidade do corpo e da alma, ao medo, à violência... Pesadelos que comprometem e, não raras vezes, põem a perder as relações, mesmo aquelas mais profundas. É triste e preocupante observar, por exemplo, pais desautorizando decisões das instituições de ensino, mesmo que flagrantemente justas e juridicamente perfeitas. É vergonhosa a postura irresponsável de pais que se tornam reféns dos caprichos e baldas de crianças e adolescentes. Não sabem, ao que parece, os pais “cegos”, que ao serem omissos e coniventes frente à falta de respeito do filho pela hierarquia personificada na pessoa do professor, nada mais fazem do que abrirem mão da própria autoridade. Pais que pensam, agem e, não raras vezes, vestem como crianças e adolescentes. Tamanha aberração tem gerado imensuráveis prejuízos à teia social. Filhos e filhas paridos sem a existência dos modelos e referências indispensáveis. Naus sem bússola. A inexistência de um “norte” claro, firme e convincente tem engendrado seres vazios do ponto de vista ético e moral. Pais “cegos” temem em dizer não, mesmo quando necessário. Pais “cegos” criam uma redoma em torno do filho, onde, parecem acreditar, não há lugar para a dor e frustração. Formam o guri para o “mundo”, não o que desejamos, mas um mundo “paralelo”, onde o hedonismo, o materialismo exacerbado, o individualismo e a torpeza prosperam. Ironicamente, o mesmo mundo que eles, os pais “cegos”, paradoxalmente condenam em seus discursos bem elaborados. Cabe à escola, também, tensionar para que o olhar míope ou até mesmo tomado pela catarata retome a acuidade visual. Para isso, mister que haja coragem, disposição e convicção por parte das instituições de ensino. Tamanha e complexa “operação cirúrgica” requer paciência, resiliência, ética, competência, estudo, planejamento, coerência, capacidade para ouvir e auscultar inclusive o “não-dito”. Requer, sobretudo, amor.  

Veja também:

http://www.institutosaofrancisco.com.br/site/artigos_visualizar.php?artigo_autenticacao_=3d26f41ba4930f6ebacfe65998bc2d0f

terça-feira, 29 de outubro de 2013

SALADA DE FRUTAS


SALADA DE FRUTAS
Prof. Gilvan
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br


                Apesar de estranho, o título acima vem ao encontro da tentativa de reunir neste texto todos os temas apresentados pelos grupos do Terceiro Ano do Ensino Médio do Instituto de Educação São Francisco, durante o mês de outubro de 2013. Desafio complexo, contudo factível. O primeiro tema diz respeito à cidadania. Os educandos foram unânimes ao reconhecerem que ser cidadão pressupõe efetiva participação social, onde direitos e deveres caminham juntos. Chamaram atenção para a visão que se tinha sobre o termo na Grécia Antiga, onde o que se via era o exercício da cidadania limitado a um grupo muito reduzido de pessoas. No que tange ao Brasil, os alunos fizeram memória do período da Ditadura Militar (1964-1985), onde o Estado cerceou muitos dos direitos básicos, adotando práticas autoritárias. Foi abordado, ainda, acerca da atual Constituição brasileira, chamada de “Cidadã”, enfatizando-se a distância entre a previsão legal e a realidade vivenciada por enormes parcelas da população. Outro tema trabalhado pelos grupos diz respeito à cidade. Foi dito que ao longo da história as cidades foram crescendo e se tornando cada vez mais complexas, especialmente a partir da Revolução Industrial. Lembraram a importância do planejamento frente à expansão dos centros urbanos, observando a enorme distância entre o que se vê nos países desenvolvidos e nos subdesenvolvidos. Ao contrário dos primeiros, no Sul – salvo exceções – faltam investimentos no transporte, saúde, educação, saneamento básico, entre outros. Trataram, também, acerca das chamadas “cidades globais”, além de diferenciarem as grandes metrópoles, subdividindo-as em alfa, beta e gama. Reforçaram o conceito de Rede Urbana, ou seja, a complexa “teia” de relação entre as áreas mais urbanizadas. Quanto ao Brasil, destacaram a cidade de São Paulo, onde questões históricas, políticas e econômicas contribuíram para fazer daquela metrópole uma referência não apenas nacional, mas mundial. Os grupos trouxeram à tona, ainda, o sério problema da moradia no Brasil, problema este agravado pelo baixo poder aquisitivo e pela especulação imobiliária, intensificando o clima de tensão e contribuindo para a eclosão de movimentos que, mesmo à margem da lei, buscam redimensionar áreas urbanas e rurais, quase sempre sem as mínimas condições de assentamento. Finalmente, os grupos deram destaque para a capital gaúcha, onde fizeram menção aos chamados “gargalos” que têm assolado Porto Alegre, problemas como saneamento, saúde, transporte, educação e segurança. Deixaram claro que o Poder Público tem deixado a desejar em relação aos serviços prestados à coletividade, acirrando o sentimento de insatisfação e desconfiança da população. Para coroar as falas dos alunos, alguns grupos ficaram responsáveis por ilustrarem algumas das questões trabalhadas em aula através de gráficos. Estes surgiram a partir de enquetes feitas junto aos eleitores, reforçando a impressão já retratada ao longo das apresentações.  


                Fica o agradecimento a todos os grupos pelo esforço e dedicação. Sugiro que estudem bastante e deem atenção especial aos termos em negrito. Havendo dúvidas, contatar, preferencialmente, por e-mail. 

sábado, 26 de outubro de 2013

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

AMOR E SEXO


AMOR E SEXO
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br


                Diz a lenda que Amor e Sexo nasceram juntos. Gêmeos, portanto. Univitelinos, segundo reza a história. Daí tamanhas semelhanças, a ponto de, por muitos, serem confundidos. Persiste a dúvida: quem nasceu primeiro? Os românticos preferem acreditar ter sido o Amor. A maioria, entretanto, diz ter sido o Sexo. Até porque, é inegável, este último é mais “ligeiro” do que o Amor. Os irmãos apenas riem da celeuma criada pelos homens. Para eles, ao que parece, o que menos importa é a cronologia humana. Entre os irmãos, tamanhas vaidades passam de largo. Admitem, isto sim, serem diferentes. Deliberadamente, inventam, por vezes, confundirem os mortais. Hora vestem-se da mesma forma, hora trocam de roupas entre si, para desespero total dos que tentam identificá-los. “É o Amor!”. Não, era o outro. “É o Sexo”. Errado, se tratava do Amor. Bem-feito para os homens, quem mandou tivessem a mania de compará-los. Salvo os poetas, todos os demais teimavam em atribuir aos irmãos características e atributos distintos. Dizem: “o Amor é assim e o Sexo é assado...”. Por que a insistência em separá-los em “caixinhas” estanques? Umbilicalmente ligados, os irmãos gostavam, isto sim, é de andarem juntos. Um quebrava o galho do outro. Não foram poucos os momentos em que o Sexo precisava fazer-se presente e na hora “h” falhara... Quando tudo parecia perdido, lá estava o Amor para substituir o irmão. Perfeito. Todos saíam satisfeitos. Às vezes, era o inverso. É verdade que, um que outro desconfiava da artimanha dos manos. Esperava o Amor, vinha o Sexo. Esperava este último e quem dava as caras era o primeiro. Experienciaram alguns apuros. A título de safar-se, existiram momentos em que o Amor teve que vestir a camisinha do irmão, sob o risco de perder a companhia. Todavia, os instantes mais tensos foram aqueles em que o Sexo precisou se passar pelo Amor. Este tinha lá seus trejeitos, difíceis de serem imitados pelo irmão. Bastava, às vezes, um olhar mais acurado para desmascarar o Sexo. Este era mais debochado, inoportuno, expansivo, direto. O Amor, por sua vez, era – exceto quando tomava umas que outras – mais introspectivo, discreto, paciente, meticuloso, ponderado do que o irmão. Apesar das diferenças apontadas, no fundo, Amor e Sexo nutriam uma salutar inveja recíproca. O Amor bem que queria ter a espontaneidade e a “ginga” do irmão. Este, por sua vez, muitas foram as vezes que sentiu falta da prudência do Amor. Devido à pressa, entrara em becos e buracos errados, sujos e perigosos. A própria existência já vira ameaçada! O mais curioso é que, acredite, o Sexo parecia não aprender. O tempo passara e ele continuava um cabeça-dura. O Amor não. Este dava mostras de que aprendia com os erros. Verdade que se diga, sofria dias a fio. Depois passava. O Sexo era mais sanguíneo. Explodia, praguejava, mas logo-logo se acalmava. Era como se nada tivesse acontecido. Raramente guardava mágoa. Virava a página e pronto! O Amor, ao contrário, levava algum tempo para digerir os problemas. A serenidade se mostrava incapaz de disfarçar a tristeza e a decepção. Amor e Sexo. Dois irmãos que aprenderam a viver e a conviver. Não conseguiam vislumbrar outro mundo senão aquele onde, feito siameses, se completavam. Enquanto isso, inócua e tolamente, os homens seguiam discutindo: quem nascera antes, Amor ou Sexo?  



quinta-feira, 24 de outubro de 2013

EAD na EJA


EAD na EJA
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br


                Mais do que um amontoado de letrinhas, a EAD na EJA suscita uma série de reflexões. A Educação a Distância tem se proliferado pelos quatro cantos do país. Como quase tudo, tem lá seus “prós” e “contras”. Por um lado, a EAD na Educação de Jovens e Adultos representa a oportunidade para muitos de concluírem uma ou mais etapas do ensino sem os contratempos do modo “presencial”. Bom, talvez, para aqueles trabalhadores expostos a cargas extenuantes de exercício laboral ou mães envolvidas com seus recém-nascidos, por exemplo. Bom talvez, para aqueles poucos autodidatas, capazes de – em que pese inexistir acompanhamento sistemático do educador – darem conta das ciências e conhecimentos construídos ao longo da história. Por outro lado, a EAD na EJA pode representar, mesmo que tácita e não reconhecidamente, uma espécie de pérfida e inaceitável “higienização” do ambiente escolar, onde se varre para baixo do tapete ou do Mouse Pad alunos considerados indesejados. Uma estratégia aparentemente interessante de mitigar problemas como indisciplina, violência, infrequência e evasão, tão comuns nos ambientes escolares. O asseio dos laboratórios de informática permite ao professor que evite sujar as mãos com o pó de giz, além de, quem sabe, aliviar a “tensão” decorrente do contato direto e diário com o educando. Este, muito comumente, é visto como um “problema” e não como um “desafio”. Melhor, portanto, lança-lo para além dos muros da escola. Questões legais, burocráticas e formais como percentual mínimo de frequência são facilmente resolvidas mediante o recolhimento de alguns “trabalhinhos” devidamente arquivados na pasta do aluno. A presença física deste último, portanto, é dispensável. Cria-se, talvez, com a EAD na EJA um ambiente tido como ideal. Para quem? No fundo, inexiste escola ideal, assim como também não existem alunos, professores, pais e gestores ideais. Assim, mister é que se pense numa instituição de ensino para pessoas não tão perfeitas. Baixinhas, altinhas, gordinhas, magrinhas, ingênuas, maliciosas, honestas, pouco confiáveis, ascetas, viciadas, politizadas, alienadas, atletas, sedentárias, polidas, pouco amáveis... Enfim, pessoas. Estas, nem sempre ou quase nunca se encaixam nos nossos “esquemas”. Ainda assim, insubstituíveis, pois são elas que dão sentido ao “eu” e a tudo o que, direta ou indiretamente, orbita em torno do “nós”, inclusive a escola. Educação de verdade e de qualidade não deve prescindir da presença do educando. A “distância” põe em risco o vínculo, matéria-prima fundamental no processo ensino-aprendizagem. Cabe à escola, portanto, servir de força centrípeta para o convívio, mesmo que às vezes conflituoso. Sejam as diferenças bem-vindas, assim como os pontos de vista e as idiossincrasias de todas as espécies. Escola sem alunos soa como palco de artistas sem plateia, gestante sem feto, oceano sem sal. Os educandos estão para a escola, assim como o orvalho para flor. Complementam-se. A EAD na EJA deve ser vista com cuidado, não simplista e radicalmente enjeitada ou descartada. Pode ser útil, desde que aplicada e voltada para públicos específicos. Deve ser a exceção, não a regra. Critérios claros e sensatos devem ser construídos, sem perder de vista a qualidade do ensino ofertado. Deve prevalecer o interesse da coletividade, pois é por causa dela que a escola deve pulsar. A EAD na EJA deve ampliar e não cercear o sagrado direito de acesso e permanência do educando nos assentos da escola.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

PEDRAS TAMBÉM CHORAM


PEDRAS TAMBÉM CHORAM
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br


                Acostumado à aspereza da vida, não pensava que choraria. Ao menos, daquela forma. Copiosamente. Teria o barulho do chuveiro elétrico disfarçado os suspiros e grunhidos vindos da alma? Temia que não. Afinal, tantos anos de farda e serviços prestados aos aparelhos repressores do Estado contribuíram para forjar uma espécie de máscara. Rude, mas pelo visto superficial. Não era tão forte assim. O box do banheiro servira talvez de escudo, não contra arruaceiros, baderneiros, torcedores tomados pelo fanatismo doentio. A única turba naquele instante era das mais profundas emoções e sentimentos que brotavam do peito. Este doía a ponto de temer pelo pior. Não se surpreenderia caso quedasse fulminado por um ataque cardíaco. Beirava os cinquenta, dormia e alimentava-se mal. Terreno propício às enfermidades do corpo. A proximidade da aposentadoria não fora suficiente para dar-lhe tranquilidade nem tampouco confiança no porvir. Dia após dia, noite após noite, pensava na família, em especial no filho mais novo. O mesmo que agora se tornara a fonte de todo aquela dor. As lágrimas corriam torrencialmente, confundindo-se com a água que caía por sobre a cabeça. Vez por outra, a imagem da esposa afogada no interminável choro só fazia aumentar o mal-estar. Onde errara? A fatídica pergunta o atormentava. Não conseguia, por maior que fosse o esforço, enxergar a luz no final do túnel. Tudo parecia perdido. Feito corvos, pensamentos nada otimistas, rasantes, sobrevoavam a cabeça do militar. Teriam sido cinco, dez, quinze minutos? Prolongara o banho mais do que de costume. Tentara mentalizar o trajeto entre o banheiro e o quarto de casal. O que diria se encontrasse alguém pelo caminho? Estava confuso. Optara pelo silêncio. Antes este do que palavras pela metade, quase sem nexo. Torcia para não cruzar com a mulher ou com os filhos, especialmente o mais novo. Sentia-se traído. O tiro saíra pela culatra. Tudo às avessas. Prendera larápios, abordara prostitutas, enfrentara homicidas, tiroteara com quadrilheiros... Afeito ao mundo do crime e da contravenção, sem com eles deleitar-se. O convívio com o submundo não fora suficiente para que se deixasse levar pelo canto da sereia. O dinheiro aparentemente fácil jamais o atraíra. O pouco que tinha era fruto dos longos anos de trabalho. A lisura de caráter sempre fora seu maior patrimônio, sua maior herança. Agora vinha o guri para jogar por terra tudo o que ensinara. Maldita hora que comprara aquele computador. O filho varava a noite dedilhando o teclado, metido nas redes sociais. Nelas, se transformava. Tentava parecer o que, no fundo, jamais fora. Afinal, de onde tirava aquele vocabulário chulo? Aquelas abreviaturas um tanto que sem sentido? Não serviu, por certo, a casa de escola para tamanho desmando. Triste ironia. Pai militar e o filho lhe apronta. O corredor parecia não ter fim. Nunca o quarto lhe parecera tão distante. A mulher já estava sobre a cama, virada para o lado contrário ao da porta. Talvez dormisse. Mais provável que não. O edredom floreado denunciava o soluçar da companheira. Não sabia como acalentá-la. Não se dá o que não se tem. Não tinha paz, como oferecê-la? Aceitaria a esposa mais sofrimento e dor? Não suportaria. O policial optara por apenas deitar, sorrateiramente. Ele fingia pensar que ela dormia. A mulher, por sua vez, fingia acreditar que ele pensava estar ela dormindo. Confusão de ideias. Entrara para baixo das cobertas. Entre eles, o silêncio. Não demorou, o choro voltou. Fazia lembrar o Vesúvio a inundar Pompeia. Impossível controlar. Ambos se entreolharam em meio às sombras do quarto. As silhuetas iam ganhando vida à medida que as lagrimas dos dois se encontravam. Nenhuma palavra. Pudera! O abraço mútuo se mostrara suficiente para aplacar a dor de ambos. Reacenderam eles não apenas o amor, mas também a esperança.  


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

ÍNDIO VELHO (2)


INDIO VELHO (2)
Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br



                O índio, remanescente da tribo guarani, parecia indiferente ao avanço da idade. Aliás, para ele o tempo escoava de maneira distinta do juruá. Jamais usara, por exemplo, relógio. Exceto a sucessão das estações e as mudanças de lua, o índio velho não atentava para o calendário. Janeiro, julho, dezembro... Pouco lhe diziam os meses do ano ou os dias da semana. Todo dia era de trabalho e de descanso. Todo dia era sagrado, portanto, dia de gratidão. Ao longo da vida, muito mais agradecera do que pedira. Por que seria diferente? Afinal, tinha tudo: o que comer, o que vestir, onde inclinar a cabeça. O índio velho, sentado sobre a cadeira de vime, sorvia o mate quente enquanto o olhar parecia distante, talvez acompanhando as lembranças de tempos idos. Não tinha do que se arrepender. Jamais prejudicara, intencionalmente, alguém. Não matara, não furtara, não roubara, não cobiçara o que é de outrem, não se apropriara de bem alheio (nem privado e nem, tampouco, público)... Acreditava o índio não fazer nada mais além do que era de sua obrigação. Aprendera com os antepassados assim. Vez por outra, fixava o olhar num que outro ponto, como que a observar meticulosamente um determinado objeto. Não muito adiante, uma criança parecia exigir do adulto, talvez seu pai, um brinquedo. Frustrado em sua intenção, o pirralho mais parecia um cavalo xucro, pinoteando daqui e dali. Diante da cena, o índio velho só abanou a cabeça, talvez em sinal de desaprovação ou, quem sabe, de desesperança quanto às futuras gerações. Tomou-lhe conta certo rubor, envergonhado que estava por ver a carroça posta frente aos bois. Ao ver o adulto refém dos caprichos da criança, sentiu uma espécie de ânsia, um mal estar a invadir o estômago. Não entendia e menos ainda aceitava a ditadura do piá. Outro dia ainda, um sobrinho vindo das bandas da capital, noticiara que não se podia mais dar uma palmada sequer no guri ou guria levados. O índio pensou, pensou... Não disse nada. Engoliu em seco a incredulidade. Fora criado em meio às leis advindas dos costumes, de pai para filho. Cabia ao último obedecer e respeitar o primeiro. Simples assim. A obediência e a hierarquia jamais foram fonte de rancor entre seu povo. Ao contrário. Era um tempo em que a tribo paria crianças sadias e felizes, emocionalmente equilibradas, respeitosas, disciplinadas, atentas, ágeis, comprometidas com o grupo, solidárias. Crianças que corriam, brincavam, “morriam” aqui para reaparecerem logo ali adiante. Apesar de uma que outra rusga, típica da idade, desconheciam a violência e ardilosa traição. Bastava um olhar do adulto e pronto! Os pequenos se aquietavam. O índio velho tinha dificuldade de compreender o que chamavam de “modernidade”. Como entender o profundo vazio das crianças de hoje? Têm, muitas vezes, tudo o que o dinheiro possa comprar, porém mais parecem um vale de ossos secos. Têm dificuldade para sentarem, escutarem, se concentrarem. A obesidade é não apenas do corpo, mas da alma. O índio velho nascera num tempo em que prática e palavra caminhavam juntas. Hoje, ficava espantado ao ver muitos juízes, pastores, advogados, psicólogos, médicos, psicopedagogos, professores gerando filhos desgarrados, desalinhados, desatentos, hipocondríacos, viciados, mentirosos, arrogantes, violentos, maldosos, desleixados, preguiçosos... Uma espécie de infanticídio espiritual. Centenas, milhares, milhões de crianças “natimortas”. Pele, osso e Coca-Cola. Pouco mais do que isso. O índio velho, com o olhar ainda absorto diante da cena da criança raivosa, não dizia nada. Limitava-se a lamentar. Sobre ele, uma revoada de caturritas a desaparecerem no horizonte. 

terça-feira, 8 de outubro de 2013

O SETOR TERCIÁRIO


O SETOR TERCIÁRIO
Prof. Gilvan Teixeira
blog: profgilvanteixeira.blogspot.com.br



                Ao longo da história da humanidade, os setores da economia ganharam maior ou menor destaque, conforme a época e o lugar. Assim, por exemplo, na Pré-História, a caça e a pesca (atividades extrativistas do Setor Primário) mereceram destaque. Já na Antiguidade, a agropecuária (também pertencente ao Primário) ganhou relevância, da mesma forma que na Idade Média. Com a Modernidade (entre os séculos XV e XVIII), o comércio (Setor Terciário) passou a ter enorme importância, daí falar-se em Revolução Comercial. A Idade Contemporânea trouxe consigo a chamada Revolução Industrial, inicialmente na Inglaterra e, mais tarde, em outras regiões do planeta. Com a contemporaneidade, o Setor Secundário, portanto, passou a ocupar lugar de destaque na economia. Hoje, em especial nos países desenvolvidos (Norte), o Setor Terciário, representado principalmente pelos “serviços”, tem ganhado espaço. Exemplo disso é o turismo, seja ele “natural” (quando a própria natureza garante, por assim dizer, os atrativos turísticos) ou “produzido” (quando a ação humana é a principal responsável pelos referidos atrativos). No Brasil, assim como na maioria dos países “emergentes” – como os do BRICS – o setor de serviços também vem sendo um dos mais importantes na composição do PIB (Produto Interno Bruto). O turismo em nosso país tem inegável importância econômica e social, por exemplo. Contudo, em que pese tamanha relevância, inúmeros são os problemas e gargalos que prejudicam tal atividade econômica. Um deles é a infraestrutura. Rodovias, portos, aeroportos, saneamento básico, segurança pública são alguns entre tantos pontos muito aquém do razoável, pontos estes que, sem dúvida, servem de limitadores e inibidores para a vinda e trânsito de turistas em nossas terras. Somado a isso, existem problemas conjunturais ligados ao câmbio (valorização ou desvalorização do real frente ao dólar), às crises internacionais, entre outros, que contribuem negativamente para o turismo no Brasil. Ainda assim, o Setor Terciário – como o turismo, por exemplo – tem sido responsável pela geração de empregos, trabalho e renda.
                Vimos em nossas aulas que inúmeros e inegáveis são os avanços no campo das relações trabalhistas. Muitos dos direitos hoje existentes são frutos de um longo e penoso processo, oriundos, portanto, das lutas das classes trabalhadoras. Apesar disso, verifica-se no Brasil, ainda, o trabalho escravo. Segundo dados oficiais, são mais de quarenta mil trabalhadores nessa situação. Apesar das diferenças entre o trabalho escravo hodierno e o de épocas pretéritas, algo existe de comum entre eles: o desrespeito a um princípio hoje indiscutível, o da dignidade da pessoa humana. As leis abolicionistas do século XIX não se mostraram capazes de romper com a discriminação, de qualquer espécie, nem tampouco de promover a igualdade social. Não por acaso, a exploração ignóbil e abjeta da mão de obra humana segue sendo uma triste realidade neste país.



sábado, 5 de outubro de 2013

TERCEIRÃO


TERCEIRÃO
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                Mais uma Gincana que termina. Por um lado, alívio, pois só quem está envolvido com a organização da mesma sabe a carga de responsabilidade que ela representa. Por outro lado, alegria. Há muitos anos não via uma Gincana onde todas as turmas de formandos tenham se mostrado tão solidárias e cúmplices da felicidade alheia. Rusgas? Nenhuma que tenha chegado ao meu conhecimento. Ofensas, provocações, maus agouros? Nada, absolutamente nada. As turmas 31, 32 e 33 deram uma elogiável demonstração de civilidade. Belo exemplo a ser seguido por nós, adultos, acostumados que estamos a confundir “adversário” com “inimigo”. Ora, o primeiro nos faz crescer, amadurecer, melhorar. Não fosse nosso “oposto”, estaríamos condenados à modorrenta mesmice. O tensionamento é vital para que aprendamos a lidar com o “diferente”. Nossos formandos tiraram proveito de tal máxima. Defenderam suas respectivas bandeiras sem, contudo, rasgar as de outrem. Destacaram suas cores, sem espezinhar os demais matizes. Como esquecer os discursos das representantes de turma? Verdadeira lição de humildade. Perceberam os formandos fazerem parte de um mesmo “barco”, não o de Caronte, barqueiro do Hades. Os olhos tomados de lágrimas dos educandos revelavam um misto de contentamento e saudade. Felicidade pelo momento – mesmo que, para alguns, os números trazidos através do microfone não fossem aqueles desejados –, mas saudade, antecipada e profunda, pela proximidade do término do ano. Não um ano qualquer, mas do tipo especial, daqueles que calam na alma e na memória. Sabem eles que nunca mais desfrutarão de momentos com aquele. Última Gincana. Última turma. Último ano de São Francisco. Até das aulas de Geografia sentirão falta (é verdade!). Olharão para trás e lembrarão de cada canto do São Chico, dos professores, porteiros, auxiliares, padres... Não por acaso, as funcionárias da limpeza são chamadas de “tias”, tratamento quase sanguíneo, tamanha a afinidade forjada ao longo de quantos anos? Para muitos dos formandos, dez, onze, doze anos... Uma vida! Por muito tempo, para eles, o Instituto de Educação São Francisco, ou simplesmente São Chico, foi a segunda casa, quando não a primeira. Como todo lar onde transborda amor, muitas festas, mas também muitas cobranças. Quem ama exige. Saberão, no momento oportuno, reconhecer isso. O certo, ao ver o “Terceirão” fazendo a festa, é que estamos no caminho certo, em que pese todas as adversidades e intempéries. Formamos pessoas de bem, rapazes e moças que, ali adiante, serão trabalhadores e trabalhadoras, pais e mães, homens e mulheres. Até então, nós os mais velhos, os tivemos “nas mãos”. Amanhã serão eles a nos governarem e protegerem. Daí o compromisso que temos em formarmos sujeitos capazes de construírem um município, estado, país e mundo assentados nos valores do Evangelho, onde prospere a paz, a solidariedade, a honestidade, o desenvolvimento sustentável e a justiça social. Parabéns aos alunos e alunas que fizeram da Gincana 2013 um momento especial. Parabéns aos pais que, direta ou indiretamente, contribuíram para o evento. Parabéns à Direção, professores e funcionários que, incansavelmente, não mediram esforços para o sucesso da Gincana. Parabéns ao “Terceirão”.


sexta-feira, 4 de outubro de 2013

INCOERÊNCIA


INCOERÊNCIA
Gilvan Teixeira
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                Somos bons em algumas coisas. Uma delas é a de produzirmos profundas e interessantes incoerências. O mesmo Estado letárgico, omisso e incompetente responsável pelo flagrante sentimento de insegurança e impunidade, de forma pouco comum e intrigante foi célere em apontar suspeitos por alguns atos de vandalismo, enquadrando-os como práticas criminosas levadas a cabo por quadrilheiros e outros “tipos” penais trazidos pelo ultrapassado e ineficaz Código Penal. Prontamente, os ditos “órgãos de segurança” (para quem?) – mesmo que respaldados por mandados judiciais – invadiram casas e apartamentos, tomaram posse de documentos, computadores e, pasmem, até livros que pudessem facilitar as investigações, fazendo lembrar – por vezes – a Inquisição. Foram queimadas talvez não obras literárias, mas reputações de jovens e suas famílias. Honra, lisura ética, respeito e reconhecimento junto à comunidade, nessas horas, são lançadas no lixo, ante a falta de cuidado dos aparelhos repressores do Estado. A imprensa, acostumada a jogar para a torcida, quase sempre promove um verdadeiro linchamento público, mesmo que – do seu jeito, é claro – garanta o famigerado “contraditório”. A ação estatal promovida em desfavor de jovens como Matheus Gomes e Lucas Maróstica deve servir de reflexão. O que se defende aqui, por certo, não é a violência, a depredação do patrimônio público ou quaisquer outros atos atentatórios ao interesse (?) público. Devo lembrar, é claro, que interesses público e estatal não são sinônimos. Ainda mais neste país, onde o Estado historicamente se distanciou da vontade da maioria. Não por acaso, saúde, segurança e educação de qualidade, por exemplo, seguem sendo privilégio de uma ínfima minoria. Os jovens citados cometeram algum delito? Não sei e nem tampouco cabe a este humilde professor averiguar. Todo e qualquer crime deve ser investigado, respeitado o direito de defesa, e punido. Ora, o que se questiona, isto sim, é a incoerência do Estado. A pressa, “extraordinária”, do Poder Público em achar um “culpado” para o problema é que preocupa e desperta enorme desconfiança. Não por acaso, cheira à perseguição política, o que, diga-se de passagem, seria vil e inaceitável dentro de um contexto dito democrático. O mesmo Estado que se mostra incapaz de promover a paz, reprimir o crime, sufocar a corrupção nas próprias entranhas, inibir a “promiscuidade” político-partidária, garantir celeridade aos intermináveis processos, de repente, não mais que de repente, age de forma rápida e firme (será que justa?) contra algumas lideranças de movimentos sociais. Por quê? Tivesse o Estado igual “agilidade” e rigor frente aos desvios de recursos públicos, superfaturamentos, improbidades administrativas, “super-salários”, privilégios corporativos, enriquecimento ilícito... O Brasil seria outro. É violenta a ação que danifica o patrimônio público e também privado? Sim. É violenta a ação que imobiliza a cidade, o estado e o país, impedindo o livre trânsito de pessoas, por exemplo? Sim. É violenta a ação que agride símbolos reconhecidamente nacionais? Sim. Contudo, inexiste maior violência do que aquela que joga às traças a maioria de nossa gente. A maior entre as violências é a do fosso, em parte criado e reforçado pelo Estado, que alija incontáveis parcelas da população daquilo que lhes é de direito. Há mais grave violência do que aquela que ataca a esperança de um povo? Nossos jovens, como o Matheus e o Lucas, deveriam ser o retrato mais fiel da esperança. Querem, porventura, acabar com o que eles representam: a seiva da mudança, o poder de indignação e o grito dos excluídos?  

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

SALDÃO


SALDÃO
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                Dia desses, uma amiga – através do face – usou a expressão “saldão” ao se referir a um encontro ocorrido numa conhecida Universidade do interior do Rio Grande do Sul. Nele, dizia ela, muitas pessoas ligadas ao ensino. Principalmente professores. O que mais se viu, prosseguiu minha amiga, foi discurso. Para todos os gostos e de todos os calibres. Indiscutível e invejável a capacidade que temos em teorizar. Sobram chavões e teorias pedagógicas, da mesma forma que sobejam mirabolantes planos de estudo, PPPs, Regimentos, etecetera e tal. Contudo a prática... Fosse a escola pública uma empresa, por certo estaria fadada ao fracasso. Falida. Não sobreviveria ao mercado, pois que seu produto careceria de qualidade e suas metas raramente seriam alcançadas. As raríssimas exceções só serviriam para confirmar a regra. Qual empreendimento resistiria à falta de rigor e clareza de seus objetivos? Uma empresa destituída de comando, hierarquia, respeito às regras e rotinas indispensáveis ao bom funcionamento. Assim, em geral, tem sido a escola pública. Pontualidade, competência, coerência, humildade, humanismo... Alguns entre tantos atributos que têm passado de largo da escola pública. Democracia tem sido sinônimo de desleixo frente aos princípios mais elementares da Administração Pública. Interesses pessoais, muitos deles escusos, têm se sobreposto às necessidades coletivas. Repete-se no ambiente escolar muitas das pérfidas relações de apadrinhamento, troca de favores, bem como a confusão entre público e privado. Pais e educandos, em regra, servem apenas como “bucha de canhão”. São lembrados na hora de “pagar a conta”, comer jiló ou, então, em momentos onde urge a participação da famigerada “comunidade escolar”. Na eleição de diretores, por exemplo. Como que, por passe de mágica, a comunidade que ainda ontem era privada da real participação junto às decisões administrativas, pedagógicas e financeiras da escola, é “convocada” a fazer parte do processo. Enchem-se os pulmões com expressões do tipo: gestão democrática, participação coletiva, cidadania, etecetera e tal. Contudo, na hora do “vamos ver”, é a minoria quem decide. Há muito, a escola pública tem sido uma verdadeira Babel. Confusão de discursos, interesses e propósitos. Comum é vermos Direções sem direção, completa e flagrantemente perdidas em meio à desorganização, indisciplina, baixo rendimento, escassez de recursos, falta de professores. A (ir)responsabilidade, por certo, não deve recair apenas sobre o colo da instituição de ensino. Cabe, também, ao Poder Público, aos pais, aos educandos. É um problema coletivo, cabendo a todos, portanto, resolvê-lo. Como? Inexistem receitas. O certo, porém, é que as respostas serão achadas não em discursos, mas em práticas efetivas. Discursos, palavras de ordem e chavões têm servido, sobretudo, para alavancar pretensões pessoais e/ou de determinados grupos na ocupação, às vezes vitalícia e hereditária, de postos junto a sindicatos, conselhos e similares. Históricos cabides de emprego, trampolins político-partidários e moedas de troca. Neles, feito traças e cupins, alguns se arraigam, se escondem. O estrago, como se sabe, é grande. A saída para a grave crise no ensino passa pela real valorização dos principais atores: professores e alunos. Aos primeiros, melhores salários, apoio pedagógico, infraestrutura adequada, planos de carreira que privilegiem o “retorno” junto ao contribuinte (é quem paga a conta...). Aos alunos, acolhimento, respeito às diferenças, compromisso com a aprendizagem.


QUATROCENTOS


QUATROCENTOS
Gilvan Teixeira
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                Quatrocentos anos! Quatrocentos! A idade da figueira impressiona, apesar de saber que existem outras árvores, da mesma espécie ou não, com mais primaveras ainda. No meio da mata, ou do que dela restou, encravada em Cachoeirinha, a figueira chama atenção não apenas pela quantidade de anéis, mas também pelo tamanho e espessura do tronco. No meio deste, uma enorme passagem, por onde passa, tranquilamente, o corpanzil de um homem médio. Quanta coisa não viu e ouviu a figueira? Quantos abraços, tratos e destratos? Quantas carícias, juras de amor, promessas cumpridas ou não? Quantos criadores e criaturas? Maus e bons? Gente de todo gênero, etnia e credo? Letrados ou analfabetos? Empresários, operários, desempregados e mendigos? Religiosos, agnósticos, carcereiros e bandidos? Sãos, doentes e sarados? Sorridentes, carrancudos, simpáticos, expansivos e tímidos? Toda espécie de gente. Quatrocentos anos! A cidade sequer sonhava em existir. Mato para todo lado e, com ele, uma incontável variedade de espécies. Imensurável complexidade encerrada numa única palavra: Mato. Neste, a figueira fixou lugar, enraizou. Apesar do tamanho, socializou o espaço com cipós, bromélias e samambaias. Sobre e sob seus galhos fortes e densos, animais de toda ordem passaram e seguem passando. Mais escassos do que outrora, é verdade, afinal muitos não resistiram à barbárie civilizatória. Diante do olhar silencioso, nem por isso omisso ou indiferente, da figueira, os mais diversos seres se cruzaram, procriaram, se serviram ou foram servidos como alimento, sem espaço para culpa frente à grande “Mãe”. Não pode haver pecado onde inexiste a maldade. Não pode existir pecado onde inexiste o homem. A figueira, antes da chegada do juruá, sentia-se segura, como elefante em meio à savana. Hoje é diferente. A placa metálica próxima a ela, nem de perto lhe transmite confiança e nem tampouco otimismo frente aos dias vindouros. Feito certidão de nascimento, não é garantia de quase nada. Ora, se o homem mata os de sua própria espécie, o que esperar em relação às demais? A figueira teme por ela e pela mata. Receia pelo preá, capivara, serpente, formiga, sapo, beija-flor... Pouco lhe adianta a pomposidade do nome: fícus guaranítica. Prefere o apelido, ainda que tosco: “mata-pau”. Assim como o simpático cacique guarani a ciceronear o grupo de curiosos, a figueira por vezes se sentia peça de museu. Admirada, mas daquela espécie de admiração incapaz de mover o juruá a transformar, profunda e verdadeiramente, suas ações. Admiração burguesa, inócua, infértil, portanto, contrária à natureza da própria figueira. Esta nasceu para frutificar e ao fazê-lo garante a sobrevivência, dela e das demais moraceaes.  Enquanto o juruá retém os frutos, a figueira os partilha. Ironicamente, ele se “vai” – quase sempre cedo –, ela permanece. A figueira fica a observar quem a observa. São formas distintas de se ver o mundo. O juruá costuma querer conhecê-la a partir da copa, por isso olha para cima e, quase inevitavelmente, deixa escapar um “ohhhh”. Não sabe ele que a grandeza da figueira reside no chão, na terra. Feito o iceberg, grandioso é o que não se vê, exceto pelos olhos da alma. O juruá, talvez, tenha perdido a sua. A figueira olha o mundo de outra forma. Melhor, de outras formas, sem que uma aniquile ou dispense as outras. Vê o mundo por todos (?) os ângulos: de cima, de baixo, do nascente, do poente, do sul, do norte... É um olhar “feminino” na essência. Ao contrário do juruá que olha para o céu e o reverencia através de palavras vazias, deixando de lado os mais elementares valores “terrenos”, a figueira lança um olhar que envolve e se envolve. Seu olhar jamais passa em branco. É, como diriam muitos juruás, um olhar verdadeiramente cristão. A figueira olha e acolhe. Para maioria, olhar de Monalisa, indecifrável. Para o velho cacique, olhar familiar. Deixou-se abraçar pela figueira numa invejável – e, para o juruá –, incompreensível e inalcançável simbiose.