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sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O bicho-papão

O BICHO-PAPÃO
Gilvan



Quando pequeno, algumas historinhas eram muito comuns, sendo contadas, quase sempre, pelos mais velhos. Iam desde os clássicos – como Chapeuzinho Vermelho, Os Três Porquinhos, Joãozinho e Maria – até aquelas que, via de regra, estavam mais no imaginário popular do que propriamente em livros. Preferíamos as últimas. Lobisomem, Mão-Preta,Velho do Saco e tantos outros “monstros” emergiam das rodas que se formavam em torno de quem as contava. Rodas formadas pelas crianças e pelos mais crescidinhos. A fala do contador de histórias, entrecortada por gestos, ia sendo recriada indelevelmente na imaginação dos ouvintes. Tudo era propício. O silêncio, a escuridão do ambiente, a chama colorida que dançava sobre um pedaço de vela. Bons tempos aqueles. Era um tempo onde um dos maiores prazeres era assentar-se bem encostadinho junto ao pai ou à mãe, sentir o calor dos corpos paternos, a respiração deles, o coração a palpitar-lhes o peito. Ainda há pouco, ralhavam conosco. Vez por outra tomávamos uns safanões. Beliscão aqui, puxão de orelha ali. A vara (quase sempre ficava só na ameaça...), só para os casos considerados mais graves. Era a “pena-capital”. A temíamos. Apesar de tudo, amávamos e respeitávamos nossos pais. Rancor, tristeza, remorso, trauma daquilo tudo? Nenhum, absolutamente nenhum. Aquela combinação de afago e palmadas esporádicas só fazia fortalecer nossos laços, nosso respeito, nosso caráter. Crescemos saudáveis.

Uma das histórias mais comuns à época era a do Bicho-Papão. Era curta, mas eficaz. A versão que mais nos contavam era a de um bicho enorme, com uma grande boca que roubava as crianças e as levava para longe dos pais. Dormir após histórias como essa era um desafio aos menores. Muitas vezes, nossa salvação era uma ou outra tia que pousava por casa e aceitava nossa súplica para que dormíssemos com ela. Os tempos, hoje são outros. A “modernidade” tem sepultado nossas fantasias. A virtualidade criada pelas novas tecnologias tem se mostrado incapaz de substituir à altura o sentido daquelas histórias. Os “monstros”, hoje, são mais coloridos (os daquele tempo eram em preto e branco), mas vazios. São excessivamente superficiais. Não calam no imaginário. São destituídos de mensagens, quer boas ou permanentes.

O Bicho-Papão de outrora tem sido substituído pelo Estado. Este, num país subdesenvolvido como o nosso, longe de ser um verdadeiro Estado democrático e de Direito, tem sido um Estado surrupiador da liberdade e da criatividade. Tal Estado, até algum tempo, vinha “furtando” (sutil e sorrateiramente) das famílias sua prole. Hoje as têm “roubado”, mediante a força e violência de uma legislação equivocada e aparentemente – só aparentemente – bem intencionada. O Bicho-Papão daqueles tempos tirava as criancinhas de casa, porém as devolvia com o passar dos anos. As “vítimas” cresciam e percebiam a importância do Bicho-Papão para suas vidas, para o crescimento moral e o amadurecimento ético, a ponto de passarem a amá-lo e a ressuscitá-lo nas histórias a serem contadas às gerações seguintes. O Estado, por sua vez, demonstra não intencionar devolver nossas crianças. As separa, cada vez mais, das famílias, através de uma legislação que se arvora como sadia mas que, na prática, tem se mostrado incapaz de contribuir para a formação de sujeitos participativos, críticos, responsáveis e felizes. Ao contrário, a infância tem sido uma etapa da vida cada vez mais curta e mal trabalhada, prova disso é o crescente número de “adultescentes”, seres nem adultos, nem adolescentes, verdadeiras aberrações sócio-patológicas. O contato entre pais e filhos além de exíguo tem estado marcado pela superficialidade, pela falta de limites, pela violência física e psicológica, a mesma violência não raras vezes praticada pelo Estado e fomentada pelos meios de comunicação. Um tempo maior na escola (há uma forte tendência em aumentar, ainda mais, o tempo de permanência do aluno na instituição de ensino) não é, por certo, garantia de qualidade. O nível cognitivo de nossos alunos é cada vez mais pífio. Comportamentalmente, então, a tragédia não tem sido menor. Formam-se levas e levas de analfabetos não apenas políticos, mas gerações de crianças e jovens que sabem cada vez menos da Matemática, da História, da Literatura, da Geografia, etc. Pior, sabem cada vez menos da vida. Crianças e jovens que têm um mundo de informações a seus pés, mas mostram-se incapazes de interpretá-las e de as usarem para a melhoria das relações e do mundo em que vivem.

O mesmo Estado que tece leis pretensamente “humanas” como a que busca coibir o chamado “tapa pedagógico” , sob a alegação de que fere a pessoa da criança e do adolescente, é o Estado que tem se mostrado incapaz de sanar os mais antigos e elementares problemas nas áreas da saúde, educação, segurança, etc. Um Estado cada vez maior e menos confiável. Mais inchado – com seus incontáveis cargos em comissão –, portanto mais caro, e menos eficaz. Um Estado que tem se mostrado incompetente em todos seus Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e esferas (federal, estaduais, municipais). Omisso, quando não submisso a interesses econômicos espúrios. Legisladores que legislam em causa própria. Um Judiciário que mais parece um “paspalho” perdido em meio ao incontável número de processos, onde só quem ganha é aquele que tem o tempo como aliado. Um Executivo marcado muito mais pelo discurso e pelas promessas do que por políticas sociais verdadeiramente sérias e inclusivas. Um sistema partidário risível, incapaz de despertar a mínima atenção do eleitor.

O Estado não tem a base moral necessária para interferir na esfera familiar. A “moral de cuecas” apregoada pelo Poder Público não pode servir de norteador às famílias no que tange à educação de crianças e adolescentes. A “palmada pedagógica” – como tem sido chamada por alguns – é não uma questão de Estado, mas diz respeito à forma como as famílias educam suas crianças. Ah, mas quando houver violência? Ora, quando o que deveria ser um ato meramente disciplinador (e, portanto, amoroso...) transformar-se em ato de violência, já existe legislação atinente à questão. Devemos nos sublevar contra a presente onda de liberalismo e permissividade doentia que assola nossas famílias. Há um poderoso movimento midiático (especialmente através da televisão e da internet) que tem corrompido importantes valores de outrora. Impera um “relativismo” vazio e danoso. Os “tempos líquidos” têm sepultado preciosas referências e formado gerações inteiras de verdadeiras “bestas”, contribuindo para a expansão das drogas, do álcool e da pornografia.

Grande é a saudade do velho e bom Bicho-Papão. Quisera cultivássemos os monstros de outrora. Mais do que saudosismo, impera o temor em relação às futuras gerações. Eis que se levanta um Leviatã, não o de Hobbes, mas um Estado envolto numa cultura marcada pela mesquinhez, superficialidade, consumismo, coisificação das pessoas... Um Estado que se apodera não apenas de nossos recursos (já parcos, muitas vezes), mas de nosso mais valioso patrimônio: nossos filhos e filhas.

Leia mais:
http://www.sinepe-rs.org.br/core.php?snippet=artigos_interna&id=13524
http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/home.jsp?localizador=Zero%20Hora/Zero%20Hora/Palavra+do+Leitor/68378&secao=visualizar

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