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domingo, 25 de setembro de 2011

Flexibilização ou retenção?

O texto abaixo foi escrito quando do surgimento de uma situação fática, há algum tempo atrás, quando atuava na SMEd de Cachoeirinha. Desde então, mudanças houveram, inclusive no que tange à terminologia. Hoje, a intenção do MEC aponta para a não-retenção nos três primeiros anos do Ensino Fundamental. 

FLEXIBILIZAÇÃO OU RETENÇÃO?
Gilvan Teixeira


            Discutir e entrar na seara da chamada “Educação Especial”, ou do ensino voltado àqueles que têm necessidades educacionais especiais é algo perigoso, mas necessário para um leigo. Perigoso porque incorremos no risco de opinarmos de forma precipitada e demasiadamente equivocada, resultado de uma certa (ou grande!) boçalidade e ignorância quanto ao assunto.  Necessário porque, seja como pais em potencial ou como educadores, estamos sujeitos a mais cedo ou mais tarde nos depararmos com situações concretas que nos coloquem frente a frente com um caso desses. Não temos dúvida de que se faz necessário ouvirmos e aprendermos com especialistas no tema, profissionais que diuturnamente se debruçam, por exemplo, sobre questões orgânicas, pedagógicas, sócio-afetivas e tantas outras que dizem respeito às necessidades educacionais especiais (N.E.E.). Parece-nos claro, ainda, que é imprescindível aguçarmos os ouvidos para a fala e os ensinamentos vindos dos educadores, dos que representam o Poder Público, dos que respondem pelos Conselhos de Educação, dos pais de alunos com NEE, dos Conselhos Escolares, das entidades públicas e privadas que lidam direta ou indiretamente com a questão. Enfim, muitos são os que podem e devem participar de maneira ativa e propositiva no sentido de construirmos uma política que seja de fato inclusiva. Dito isso, gostaríamos de tecer algumas singelas considerações acerca do assunto.


            Partamos de um fato concreto. Imaginemos uma criança com NEE, com um quadro grave de deficiência mental ou múltipla[1]. Forcemos a imaginação e coloquemos tal aluno no primeiro ano do ensino fundamental de nove anos. Final do ano letivo. Pergunta-se: o que fazer com ele? Trabalhemos com duas alternativas, quais sejam: a primeira é a que propõe deixá-lo no primeiro ano, enquanto a segunda alternativa defende a idéia de que o aluno avance para o segundo ano. Eis o fato, nu e cru. À primeira vista, os que defendem a primeira alternativa serão ou acusados de arautos do retrocesso ou, então, elogiados por evitarem de mandar adiante um problema já anunciado. Da mesma forma os que aderem à segunda proposta, serão acusados de “moderninhos” e teóricos irresponsáveis, ou então receberão aplausos pela capacidade de ousarem. Todavia, nos parece, a discussão é bem mais complexa. Exige-se um grande grau de discernimento e um pouco de humildade. Vaidades pessoais e interesses nem sempre muito claros  talvez tenham  que ser abandonados e deixados de lado em nome de algo maior, a saber o interesse do aluno, este sujeito de direito e de fato.


            Sob o ponto de vista formal, nos parece, a pretensa “flexibilização” apregoada pelos que defendem a permanência do aluno no primeiro ano não passa, na prática, de “retenção” (ou, num linguajar mais popular, “reprovação”). Sem a preocupação de tecermos uma opinião valorativa acerca da validade pedagógica do ato, a questão é que no “frigir dos ovos” a ação será interpretada como retenção. Diante dos olhos dos colegas, talvez da própria família (caso não seja feito todo um trabalho de convencimento), para fins de registro e documentação (histórico escolar), enfim, estaremos diante de um caso, ressaltamos, de retenção (reprovação). Não bastasse isso, a legislação – em especial a LDB – aponta em sentido inverso, qual seja o do “avanço” e da “promoção”, sem distinguir, diferenciar ou discriminar este ou aquele aluno, independentemente do comprometimento que, eventualmente, possua. Da mesma forma Pareceres e Resoluções, de diversas esferas, mostram-se taxativos quanto à retenção de aluno no primeiro ano, vedando-a. Não conseguimos vislumbrar no ordenamento jurídico, nem tampouco nas orientações emanadas dos Conselhos (federal, estadual e/ou municipal), “brechas” que permitam e dêem a quem quer que seja – por mais consistente que seja a argumentação - o poder de, à guisa da lei, reter o aluno no primeiro ano do ensino fundamental de nove anos. Sempre que o termo “flexibilização” foi usado em documentos nascidos nas entranhas dos órgãos e colegiados deste país foi no sentido de tornar flexível o currículo, a prática docente, as “estruturas” físicas e pedagógicas das instituições de ensino, de modo a receberem os alunos com NEE[2]. Quando vemos o termo “flexibilização” ser usado no sentido temporal, aí percebemos que o legislador (ou o conselheiro) teve a preocupação de salvaguardar os casos já previstos em lei[3] .  Os argumentos utilizados pelos que defendem a “flexibilização” do tempo do aluno com NEE no primeiro ano, são, diga-se de passagem, bem construídos e vem ao encontro de preocupações sinceras, pertinentes e honestas em relação à aprendizagem e desenvolvimento cognitivo, motor, social, etc., da criança. Contudo, o que nos parece, é que o caminho proposto por eles é equivocado do ponto de vista da legislação. Esta, ao que tudo indica, aponta para um caminho diferente, qual seja o da construção e oferta de uma “estrutura” não apenas física, mas de “serviços” especializados capazes de dar respostas às demandas surgidas[4]. Conclui-se, portanto, ser temerário a opção, do ponto de vista prático e fático (mesmo que do ponto de vista do discurso assim não pareça),  pela retenção, por melhor que seja a intenção, pois que, acreditamos, infringiríamos não apenas a lei (seja na letra, seja no espírito que a motivou) mas, sobretudo, lesaríamos o direito da criança.  


[1] Um quadro como aquele descrito, por exemplo, no Parecer do CEE nº 56 de 2006.
[2] A Resolução nº 02 do CNE, de 2001, em seu art. 8º, inciso III, diz que “As escolas da rede regular de ensino devem prever e prover na organização de suas classes comuns: (....) flexibilizações e adaptações curriculares (grifo nosso) que considerem o significado prático (...) dos conteúdos básicos (...) e processos de avaliação adequados ao desenvolvimento dos alunos que apresentam NEE (...)”
[3] A mesma Resolução acima citada, em seu art. 8º, inciso VIII, ao falar em “temporalidade flexível do ano letivo”, finaliza o inciso dizendo ser o mesmo aplicável “principalmente” nos anos finais do ensino fundamental. Isso denota, acreditamos a preocupação em não lesar a lei.  Vale lembrar que o Parecer nº 56 do CEE, de 2006, como que reproduz a Resolução supra citada.
[4] O Parecer nº 56 do CEE, no ponto 3.5.6, por exemplo, fala num “currículo funcional”. A Resolução nº 02 do CNE, por sua vez, traz à luz, em seu art. 10, chama à participação e responsabilidade conjugada com as áreas da Saúde, Trabalho e Assistência Social. 

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